Pensata

João Pereira Coutinho

28/04/2008

Regressando a "Tropa de Elite"

Duas semanas atrás, escrevi na Folha um pequeno comentário sobre "Tropa de Elite", o filme de José Padilha que conquistou Berlim e deixou o Brasil em estado de choque. Dizia então que "Tropa de Elite", pela forma séria como apresentava a criminalidade urbana no Rio, era o filme mais adulto do moderno cinema brasileiro.

Foi o que bastou para que o meu email explodisse com a fúria dos leitores. "Racista", "fascista", "nazista", "ditador", "criminoso", "sanguinário". Esses foram os elogios. Os insultos são irreproduzíveis porque a Folha é um jornal de família. A pergunta é óbvia: por que essa hostilidade, Deus meu?

A hostilidade, creio, nasce pela forma caricatural como o crime é apresentado e analisado no Brasil. Quando o assunto é "droga" ou "favelas", existem de imediato dois campos que, no seu simplismo primário, se enfrentam com irracionalidade clássica.

Existe o campo dos criminosos, ou seja, daqueles que acreditam que o tráfico é produto exclusivo da pobreza. Os criminosos são bons, naturalmente bons, mas a sociedade em volta obriga essa gente pobre a optar por uma vida de risco e transgressão. Se a riqueza fosse justamente distribuida no Brasil, não haveria droga, não haveria assaltos, não haveria crime. É a sociedade, e não a escolha individual, que transforma o criminoso em criminoso.

No extremo oposto a essa tese, existe outra. A que defende a polícia sem nenhum tipo de reserva. O crime combate-se com mais polícia; e a polícia tem de usar todos os meios disponíveis para esmagar o tráfico e a bandidagem. Os meios podem implicar a tortura ou a matança indiscriminada dos favelados.

Quando o criminalidade brasileira é dividida dessa forma, é normal que o filme "Tropa de Elite" seja repartido entre duas escolas. A primeira, que desculpa e defende os criminosos, critica o filme de Padilha e insulta de imediato colunistas de jornal. A segunda, que desculpa e defende a polícia, aplaude o filme de Padilha. Mas, estranhamente, não escreve aos colunistas de jornal.

E não escreve porque existem colunistas de jornal que não estão dispostos a embarcar em nenhuma dessas correntes. Desde logo porque o filme de Padilha, na sua complexidade, também não legitima nenhuma delas.

Os criminosos são vítimas da pobreza e da exclusão? Padilha desmente essa tese, que aliás sempre me pareceu um insulto para gente pobre e honesta. Mas Padilha desmente a tese oposta, ao mostrar a corrupção da polícia e, quando o BOPE entra em cena, ao filmar a desumana brutalidade dessa tropa de elite. Não é por acaso que o último plano do filme apresenta Matias pronto para executar um criminoso. A arma está apontada para o traficante; mas também está apontada para nós, espectadores.

E é bom que esteja. Porque os espectadores não são parte alheia ao problema, sobretudo se estivermos a falar da classe média ou alta que alimenta o tráfico ao mesmo tempo que abomina a polícia e romantiza os criminosos. A maturidade de Padilha reside na capacidade para trazer esse terceiro elemento para a discussão. E uma sequência do filme, amplamente citada, ilustra o ponto de forma crucial: acontece quando os estudantes universitários discutem "Vigiar e Punir", a obra de Foucault sobre a história do sistema prisional como mecanismo de repressão e poder. Os meninos na sala de aula, com o beneplácito de um professor tão infantil quanto eles, usam a teses de Foucault para denunciar a brutalidade da polícia como origem de todos os males, inclusive dos males da criminalidade.

Mas é novamente Matias, que curiosamente me parece o personagem central de "Tropa de Elite", quem fala com o único conhecimento que interessa: o conhecimento da experiência. E que lhe diz essa experiência? Sim, a polícia é brutal e até corrupta; sim, os bandidos devem ser punidos; mas a origem de todos os males está precisamente na atitude de meninos de classe média ou alta que, ao mesmo tempo que demonizam a polícia, alimentam o tráfico nas favelas. Quando a polícia entra para prender ou matar, e quando balas perdidas atingem crianças ou inocentes, os consumidores do tráfico já estão longe. Estão nas suas festas privadas, nas varandas de Ipanema ou Copacabana.

A culpa é da polícia? A culpa é dos criminosos? Ou a culpa é vossa, leitores? A mestria de Padilha reside aqui: na guerra civil das cidades brasileiras, há poucos inocentes e muitos culpados. Os leitores que gostam de insultar os colunistas deveriam olhar para o espelho e perguntar se o verdadeiro destinatário do insulto não é o próprio reflexo.

João Pereira Coutinho é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

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