Pensata

João Pereira Coutinho

09/06/2008

Quero ser Cristiano Ronaldo

Portugal está apaixonado por Cristiano Ronaldo. Quem é Cristiano Ronaldo? Bom, caso os leitores tenham vivido em Marte nos últimos tempos, Ronaldo é, segundo os especialistas, o melhor jogador do mundo. No Manchester United, equipe vencedora da "Champions" e da Liga Inglesa, Ronaldo foi o principal marcador em ambas as competições. E com a Eurocopa em andamento, Scolari acredita que Ronaldo será coroado rei. Aos 23 anos.

Sandro Campardo/Efe
Astro do Manchester United, Cristiano Ronaldo vira unanimidade em Portugal
Astro do Manchester United, Cristiano Ronaldo vira unanimidade em Portugal

Longe de mim contestar a sabedoria dos fatos. A história triunfal de Cristiano Ronaldo, nascido na ilha da Madeira em circunstâncias de pobreza familiar, é uma saga que merece aplauso. E, além disso, não partilho da opinião geral de que o rapaz é insuportavelmente arrogante. Não é. Tem simplesmente um gosto quase adolescente pelo jogo, o que só lhe fica bem em tempo de mercenários: quando Ronaldo joga, ele joga como um garoto no recreio escolar, driblando, correndo e chutando como se estivesse a brincar entre amigos. Existe no estilo de Ronaldo o doce sabor da nostalgia da infância.

Meu problema com Ronaldo é outro. Nos últimos meses, caminhando pelas ruas de Lisboa e do Porto, não houve um momento em que Cristiano Ronaldo não aparecesse à minha frente. Não falo da publicidade urbana, que plasmou o rosto do craque em quiosques, bancos, avenidas e transportes públicos. Falo de centenas e centenas de pequenos Ronaldos, algures entre os 8 e os 48, e que reproduziam na perfeição a moda que Cristiano lançou. Na roupa, nos brincos e, Virgem Santíssima, no penteado.

Com a roupa posso eu bem: longe vão os tempos em que havia uma separação rigorosa entre o circo e a vida civil. Não mais. Hoje, é impossível convencer os jovens, ou até os pais dos jovens, para não falar dos pais dos pais dos jovens, de que o Carnaval só dura três dias.

Mas intrigante é o penteado. Durante meses, investiguei o assunto como um Sherlock Holmes capilar. Como nascera essa nova tendência de transformar cada ser humano num galináceo? Seria um sintoma da famosa «gripe das aves», que eu ridicularizara em tempos com típica insensatez?

E, no entanto, as ruas da cidade estavam transformadas em imensas capoeiras ao ar livre, com a população nativa orgulhosamente ostentando as suas cristas de galo, uma proeza que confere à cabeça um desagradável aspecto pontiagudo. Sim, Ronaldo pode ser o melhor do mundo. Mas ele arruinou esteticamente gerações sucessivas de portugueses.

Ninguém está a salvo da epidemia. Nem a minha própria casa, onde batalhões de familiares começaram a aparecer com o cabelo em forma de flecha. Foi em contacto com eles que, tapando o nariz e os olhos, questionei angustiadamente a origem da tragédia. Todos eles respondiam o mesmo: Cristiano Ronaldo. Eles querem ser como Cristiano Ronaldo. Toda a gente quer ser Cristiano Ronaldo. Eu estou rodeado de clones de Cristiano Ronaldo, como Tippi Hedren estava rodeada de pássaros assassinos no filme de Hitchcock. E até nos sonhos há um Cristiano Ronaldo para me assombrar. Há várias noites que o pesadelo é o mesmo: Ronaldo, correndo pelo campo, em dribles sucessivos. Subitamente, e com o gol à sua frente, o jogador pára, agacha o corpo e põe um ovo. O estádio aplaude em delírio.

Acordo com suores frios e ouço o galo do vizinho a cantar as cinco da madrugada. Antigamente, minha vontade era matar o bicho. Hoje, tenho admiração por ele. No meio dos galos lusitanos, ele é o único que legitimamente se mantém firme ao seu estilo, recusando a tentação do terno e da gravata.

João Pereira Coutinho é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

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