Pensata

João Pereira Coutinho

23/06/2008

O sexo oral

Sou fã de "O Sexo e a Cidade". Descobri que era fã numa certa noite de insônia, corria 2004. Liguei a TV, assisti a dez minutos da série e adormeci como um anjo. Fiquei viciado no produto, que viaja comigo para qualquer parte. E quando a insônia regressa, pronta para destruir uma noite de repouso, eu dispenso as pastilhas habituais. Dez minutos com as Spice Girls de Nova York a ruiva, a loira, a morena, a intermédia; nunca tive tempo para decorar os nomes delas e tenho oito horas de sono garantido.

Como explicar o fenômeno? Bom, não sou especialista em neurologia. Mas desconfio que há uma parte do meu cérebro que simplesmente desliga quando existem mulheres a conversar "conversas de mulheres". O meu drama não se limita a séries de tv. Por diversas vezes tombei da cadeira em mesas de restaurante, para pânico das meninas que conversavam em volta. É embaraçoso. E é mais forte do que eu.

Não sou misógino, não sou machista. Com os homens é exatamente a mesma coisa: quatro amigos debatendo "assuntos de homens" futebol, carros, economia, eventualmente mulheres e eu ronco alto. O problema, creio, está nas "conversas de gênero": previsíveis, entediantes, circulares. Serei caso único? Não creio. E há vários anos que defendo "audiobooks" só com homens, ou só com mulheres, conversando os temas habituais entre si. Seriam vendidos em farmácias sem necessidade de receita médica. Não há coisa mais narcótica.

Assim se entende o meu recente ordálio numa sala de cinema. Por motivos de promessa religiosa, assisti a "O sexo e a cidade", versão filme, e posso garantir que teria sido preferível ir a Fátima. O filme pretende fechar a série, retomando o destino das Spice Girls alguns anos depois. A morena está casada e feliz. A ruiva está casada e infeliz. A loira não está casada mas está feliz. E a intermédia, personagem central que narra o destino das outras, quer casar para ser feliz.

É provável que algo tenha acontecido entretanto, porque quando acordei o placar eletrônico estava ligeiramente alterado: a ruiva não estava mais casada e continuava infeliz; a loira continuava solteira mas agora infeliz; e a intermédia não casara porque o namorado não quis. A morena engravidou (ou engordou? juro que não sei). E até apareceu uma negrinha em cena para preencher a cota das minorias. Moral da história? Temos negra, ruiva, loira, intermédia. E até uma criança oriental, que a morena adotou. Volta, Benetton, estás perdoado. E, por falar em Benetton, pelo meio há muitas imagens com malas, sapatos, vestidos no fundo, as páginas da "Vogue" em movimento. Nada contra a "Vogue", claro, uma das melhores revistas do mundo (sobretudo a italiana). Mas a "Vogue", ao contrário do filme, não dura dez horas.

E no final de tudo, o que resta para contar? Depois de breve pesquisa, descubro teorias interessantes sobre o fenômeno "Sexo e a Cidade". Todas elas sublinham o mesmo ponto: "O sexo e a cidade" representou, na tv, um grito de libertação feminina, permitindo que as mulheres pudessem falar e comportar-se como os homens. A tese é interessante e, para além de interessante, claramente contraditória.

Primeiro, ela defende que a melhor forma das mulheres se "libertarem" passa por serem tão vulgares como os mais vulgares dos homens: nas conversas e nos comportamentos. Uma mulher "liberada" é, digamos, um homem com sapatos Manolo Blahnik.

Mas a ironia maior é que não há "libertação" alguma em "O Sexo e a Cidade": assistindo intermitentemente ao filme (e relembrando as intermitências da série), só a Spice loira parece escapar aos sofrimentos típicos das fêmeas. Ela, pelo menos, é coerente, devorando macho atrás de macho sem sentimento de culpa. As restantes não se distinguem da minha bisavó, sofrendo com as inevitáveis tropelias dos homens. Elas são mulheres livres, com certeza e, no entanto, querem amarrar-se ao primeiro homem que encontram e idealizam. "O sexo e a cidade" não oferece a alegria libertadora das mulheres; oferece as lágrimas delas pelo Príncipe Encantado que, afinal, era um sapo. Não há coisa mais reacionária.

E não há coisa mais narcisista também. Porque se existe alguma originalidade em "O Sexo e a Cidade", ela não está no sexo. Está, curiosamente, no amor. Na definição de um novo e patético tipo de amor para o século 21. Não é por acaso que a narradora da história confessa recorrentemente que partiu para Nova York em busca de grifes e de amor. A intenção revela o mesmo propósito e a mesma confusão: encarar objetos, ou pessoas, como uma forma de preencher o vazio.

Admito que vestidos Vivienne Westwood possam cumprir essa função. Mas as pessoas não são objetos; e o amor é o oposto desse programa; ele não existe para nos satisfazer a nós; ele existe para lembrar que alguém é mais importante do que nós. Curiosamente, e nos últimos anos, só houve uma série televisiva com coragem para enfrentar essa verdade. Chama-se "The Mind of the Married Man". Não teve sucesso entre as massas.

João Pereira Coutinho é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

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