João Pereira Coutinho
Filmes paulistanos
Passei os últimos dias em São Paulo. É sempre um prazer aterrar nesse planeta, especialmente quando há filmes que prometem. Infelizmente, promessas são promessas e os resultados são mistos. Há coisa boa, coisa média e coisa má em exibição. Por onde começar?
Alexandre Ermel/Divulgação |
Dirigido por Fernando Meirelles, "Ensaio Sobre a Cegueira", com Julianne Moore, foi visto por mais de 400 mil pessoas no Brasil |
Pelo pior. E o pior é Fernando Meirelles. Lamento. "Blindness/Ensaio sobre a cegueira" não convence. Pecado original. O livro de Saramago pretendia ser uma alegoria distópica sobre uma sociedade "cega" por sua intrínseca desumanidade "capitalista". Li o livro com enfado, sentindo um abismo épico entre mim e a narrativa. O problema, o recorrente problema de Saramago, é o seu tom didático e grandiloquente. Comigo, não. Fiz a minha catequese na idade certa. Comunhão solene, idem. Não preciso de um monge comunista para me ensinar que o capitalismo pode levar à cegueira. Diziam o mesmo da masturbação. Nunca ceguei.
Meirelles segue Saramago com fidelidade e apenas amplifica o tom grandiloquente do livro. No filme, existe uma cidade anônima (perfeita São Paulo, a mais impessoal das cidades modernas), povoada por gente igualmente anônima. A cegueira espalha-se entre os nativos: uma cegueira branca que não tem explicação médica. Só uma mulher escapa à epidemia, por razões que ninguém (Saramago, Meirelles, o Espírito Santo) explica.
Divulgação |
Longa "Fatal", com Penélope Cruz, é inspirado no livro "O Animal Agonizante", de Philip Roth |
Os cegos são confinados a um sanatório, onde se seguem episódios grotescos de "totalitarismo" infantil. O momento em que Gael García Bernal, um ator subnutrido e subletrado, se converte no Fidel Castro do lugar, chega a ser bom mas pelos motivos errados, ou seja, cómicos. Meirelles poderia ter explorado o personagem, convertendo o "Ensaio" em comédia. Fatalmente, Meirelles é como Saramago: perfeitamente convencido da sua importância, e da importância da sua "obra" e da sua "mensagem". Essa ausência de ridículo levou-o a filmar o momento em que os cegos "maus" obrigam os cegos "bons" a trocar as suas mulheres por comida. Só mesmo a cabeça de Saramago para parir semelhante primitivismo. E só mesmo a cabeça de Meirelles para o filmar com o deslumbramento masoquista de um adolescente.
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Escrevi na Folha, e nesta pensata da Folha Online, que sou incapaz de atirar uma pedra ao meu amigo Woody Allen. Mas não entendo que raio foi ele fazer a Barcelona. A cidade tem atmosfera cinematográfica, sim, e Whit Stillman, essa espécie de Woody Allen versão "teen", fez em tempos uma obra estimável com o nome da cidade ("Barcelona", 1994).
Mas "Vicky Cristina Barcelona" é entretenimento tépido. A história é simples: duas americanas viajam para a cidade em busca de arte/inspiração/aventura. Conhecem espanhol fogoso que lhes propõe um "ménage à trois". O espanhol é Javier Bardem. Uma aceita (Scarlett Johansson), a outra recusa (Rebecca Hall). Com o tempo, entra uma terceira em cena (Penélope Cruz) que finalmente vai a jogo com Bardem e Johansson. O jogo termina em histeria e gritos. Aliás, todo o filme é uma gritaria constante, sem piada e sem propósito. Cheguei a tapar os ouvidos e a suspirar, enfim, pelo tom sereno e outonal de "Hannah e suas irmãs", em que havia mais intensidade passional no olhar de Michael Caine do que em todos os impropérios juntos de Penélope Cruz ou Javier Bardem.
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"Vicky Cristina Barcelona", filme de Woody Allen que tem triângulo amoroso entre Penélepo Cruz, Scarlett Johansson e Javier Bardem |
"Vicky Cristina Barcelona" é um caso infeliz de insolação. Só os diálogos se salvam, porque Woody é um escritor prodigioso.
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"Elegy/Fatal", de Isabel Coixet, tinha tudo para me desagradar profundamente. Razão lógica: sou leitor religioso de Philip Roth e "The Dying Animal/O animal agonizante", novela que inspirou o filme, é um dos grandes livros dos últimos anos. Mentes simples dirão que "O animal agonizante" é mais um capítulo nas desventuras de David Kepesh, o intelectual nova-iorquino que tem recorrente fixação por seios femininos e restantes intimidades do género.
Mentira. "O animal agonizante" é uma poderosa reflexão sobre a consciência de um homem. Até quando iremos fugir dos nossos atos e dos nossos afetos? E seremos sempre responsáveis pelas pessoas que cativamos?
O livro termina com essas questões e nunca sabemos se David Kepesh, conquistando o seu gigantesco egoísmo, irá receber o destino e a vida de Consuela, a aluna doente que ele, em tempos, seduziu. E que, apesar de tudo, ama ainda.
Isabel Coixet não permite que o seu "Fatal" termine com a interrogação do livro e redime David Kepesh, que recebe Consuela nos braços. Uma traição ao livro? De certa forma. Mas tolero o ato porque todo o filme, brilhantemente dirigido por Coixet, é tocado por uma progressiva e dolorosa expiação. Esse percurso é prodigiosamente encenado por Ben Kingsley (como David), tendo em Penélope Cruz (como Consuela) o objeto do seu demencial afeto.
Quando me disseram que Ben Kingsley e Penélope Cruz seriam o par romântico (e sexual) de uma adaptação cinematográfica de Philip Roth, não parei de rir. Durante o filme, não ri uma única vez.
João Pereira Coutinho é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.