Pensata

João Pereira Coutinho

17/11/2008

Filmes paulistanos

Passei os últimos dias em São Paulo. É sempre um prazer aterrar nesse planeta, especialmente quando há filmes que prometem. Infelizmente, promessas são promessas e os resultados são mistos. Há coisa boa, coisa média e coisa má em exibição. Por onde começar?

Alexandre Ermel/Divulgação
Dirigido por Fernando Meirelles, "Ensaio Sobre a Cegueira", com Julianne Moore, foi visto por mais de 400 mil pessoas no Brasil
Dirigido por Fernando Meirelles, "Ensaio Sobre a Cegueira", com Julianne Moore, foi visto por mais de 400 mil pessoas no Brasil

Pelo pior. E o pior é Fernando Meirelles. Lamento. "Blindness/Ensaio sobre a cegueira" não convence. Pecado original. O livro de Saramago pretendia ser uma alegoria distópica sobre uma sociedade "cega" por sua intrínseca desumanidade "capitalista". Li o livro com enfado, sentindo um abismo épico entre mim e a narrativa. O problema, o recorrente problema de Saramago, é o seu tom didático e grandiloquente. Comigo, não. Fiz a minha catequese na idade certa. Comunhão solene, idem. Não preciso de um monge comunista para me ensinar que o capitalismo pode levar à cegueira. Diziam o mesmo da masturbação. Nunca ceguei.

Meirelles segue Saramago com fidelidade e apenas amplifica o tom grandiloquente do livro. No filme, existe uma cidade anônima (perfeita São Paulo, a mais impessoal das cidades modernas), povoada por gente igualmente anônima. A cegueira espalha-se entre os nativos: uma cegueira branca que não tem explicação médica. Só uma mulher escapa à epidemia, por razões que ninguém (Saramago, Meirelles, o Espírito Santo) explica.

Divulgação
Longa "Fatal", com Penélope Cruz, é inspirado no livro "O Animal Agonizante", de Philip Roth
Longa "Fatal", com Penélope Cruz, é inspirado no livro "O Animal Agonizante", de Philip Roth

Os cegos são confinados a um sanatório, onde se seguem episódios grotescos de "totalitarismo" infantil. O momento em que Gael García Bernal, um ator subnutrido e subletrado, se converte no Fidel Castro do lugar, chega a ser bom mas pelos motivos errados, ou seja, cómicos. Meirelles poderia ter explorado o personagem, convertendo o "Ensaio" em comédia. Fatalmente, Meirelles é como Saramago: perfeitamente convencido da sua importância, e da importância da sua "obra" e da sua "mensagem". Essa ausência de ridículo levou-o a filmar o momento em que os cegos "maus" obrigam os cegos "bons" a trocar as suas mulheres por comida. Só mesmo a cabeça de Saramago para parir semelhante primitivismo. E só mesmo a cabeça de Meirelles para o filmar com o deslumbramento masoquista de um adolescente.

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Escrevi na Folha, e nesta pensata da Folha Online, que sou incapaz de atirar uma pedra ao meu amigo Woody Allen. Mas não entendo que raio foi ele fazer a Barcelona. A cidade tem atmosfera cinematográfica, sim, e Whit Stillman, essa espécie de Woody Allen versão "teen", fez em tempos uma obra estimável com o nome da cidade ("Barcelona", 1994).

Mas "Vicky Cristina Barcelona" é entretenimento tépido. A história é simples: duas americanas viajam para a cidade em busca de arte/inspiração/aventura. Conhecem espanhol fogoso que lhes propõe um "ménage à trois". O espanhol é Javier Bardem. Uma aceita (Scarlett Johansson), a outra recusa (Rebecca Hall). Com o tempo, entra uma terceira em cena (Penélope Cruz) que finalmente vai a jogo com Bardem e Johansson. O jogo termina em histeria e gritos. Aliás, todo o filme é uma gritaria constante, sem piada e sem propósito. Cheguei a tapar os ouvidos e a suspirar, enfim, pelo tom sereno e outonal de "Hannah e suas irmãs", em que havia mais intensidade passional no olhar de Michael Caine do que em todos os impropérios juntos de Penélope Cruz ou Javier Bardem.

Divulgação
"Vicky Cristina Barcelona", filme de Woody Allen que tem triângulo amoroso entre Penélepo Cruz, Scarlett Johansson e Javier Bardem
"Vicky Cristina Barcelona", filme de Woody Allen que tem triângulo amoroso entre Penélepo Cruz, Scarlett Johansson e Javier Bardem

"Vicky Cristina Barcelona" é um caso infeliz de insolação. Só os diálogos se salvam, porque Woody é um escritor prodigioso.

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"Elegy/Fatal", de Isabel Coixet, tinha tudo para me desagradar profundamente. Razão lógica: sou leitor religioso de Philip Roth e "The Dying Animal/O animal agonizante", novela que inspirou o filme, é um dos grandes livros dos últimos anos. Mentes simples dirão que "O animal agonizante" é mais um capítulo nas desventuras de David Kepesh, o intelectual nova-iorquino que tem recorrente fixação por seios femininos e restantes intimidades do género.

Mentira. "O animal agonizante" é uma poderosa reflexão sobre a consciência de um homem. Até quando iremos fugir dos nossos atos e dos nossos afetos? E seremos sempre responsáveis pelas pessoas que cativamos?

O livro termina com essas questões e nunca sabemos se David Kepesh, conquistando o seu gigantesco egoísmo, irá receber o destino e a vida de Consuela, a aluna doente que ele, em tempos, seduziu. E que, apesar de tudo, ama ainda.

Isabel Coixet não permite que o seu "Fatal" termine com a interrogação do livro e redime David Kepesh, que recebe Consuela nos braços. Uma traição ao livro? De certa forma. Mas tolero o ato porque todo o filme, brilhantemente dirigido por Coixet, é tocado por uma progressiva e dolorosa expiação. Esse percurso é prodigiosamente encenado por Ben Kingsley (como David), tendo em Penélope Cruz (como Consuela) o objeto do seu demencial afeto.

Quando me disseram que Ben Kingsley e Penélope Cruz seriam o par romântico (e sexual) de uma adaptação cinematográfica de Philip Roth, não parei de rir. Durante o filme, não ri uma única vez.

João Pereira Coutinho é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

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