Pensata

João Pereira Coutinho

12/01/2009

Cubanos, suicidas & antissemitas

1º de janeiro

O ano começa em beleza. Passo pelos canais televisos. Referências demoradas à Revolução Cubana de 1959. Aumento o volume. Ajeito os óculos. Sinto o cérebro a derreter com a paixão dos "jornalistas" ocidentais por psicopatos avulsos: Cuba é romantismo para eles. Não é uma ditadura esquálida que sobrevive há cinquenta anos. Como explicar o tom apologético das matérias? Por ignorância? Se fosse por ignorância, eu entendia e perdoava. Omnisciência é propriedade divina, não humana.

Mas em 2009 não há espaço nem tempo para ignorantes, muito menos para "ignorantes úteis". Os crimes do comunismo são conhecidos por qualquer intelecto civilizado, ou até semi-civilizado. Aposto antes na estupidez e na má-fé de intelectuais e jornalistas que negam a evidência por cegueira ideológica.

Evidência: Fidel entrou em Havana para derrubar Fulgencio Batista e conceder democracia e liberdade aos cubanos. Evidência: passaram cinquenta anos. Sem democracia. Sem liberdade. Mas com milhares de seres humanos presos ou fuzilados. E dois milhões que, inexplicavelmente, fugiram da ilha e do paraíso terreno que Castro ofereceu ao seu povo, sob a forma de isolamento e miséria. Ingratos.

Hoje, visita-se Cuba por motivos "exóticos": o turista ocidental sempre gostou de animais enjaulados, desde que possa abusar deles, financeira ou sexualmente. No final da viagem, o turista regressa a casa para mostrar as fotos do "exotismo" aos amigos. Os cubanos ficam. Enjaulados. E com os "jornalistas" a aplaudir a servidão deles.

3 de janeiro

Mãos amigas oferecem-me "The Bridge/A ponte", documentário de Eric Steel sobre os suicidas da Golden Gate Bridge, em São Francisco. Hitchcock foi o primeiro a filmar uma tentativa frustrada no mesmo cenário, em "Vertigo/Um corpo que cai", mas no filme existia um James Stewart pronto para salvar Kim Novak.

No filme de Steel, pelo contrário, tudo é retratado com uma crueza digna de "snuff film": Steel apontou as câmeras durante um ano e captou as almas perdidas que saltaram ou foram impedidas de. Exercício moralmente duvidoso e esteticamente repugnante. Peço desculpa pelo meu moralismo, mas a morte, tal como o sexo, não se filma. Não se filmam as nossas duas únicas experiências essencialmente animais.

Steel filmou e, para fechar em beleza, entrevistou os familiares e amigos a dissertar sobre os seus defuntos. Impressão gélida: todos eles, sem grandes exceções, não mexeram um dedo para impedir o salto terminal. Mesmo quando o salto lhes era comunicado com pormenores e antecedência.

Uma das entrevistadas chegou mesmo a confessar "alívio" quando soube da notícia, depois de ter falado ao telefone com o amigo momentos antes da tragédia. Não o tentou demover. Pediu apenas que o suicida escrevesse o seu nome e telefone num papel lacrado em plástico para que a polícia a contactasse depois do ato.

A reação imediata é condenar o egoísmo da natureza humana, incapaz de salvar quem pode, ou merece, ser salvo. Mas só pode atirar uma pedra quem convive diária e continuadamente com doenças mentais várias, que na verdade arrasam com a humanidade de qualquer um. Condenar a desistência dos vivos é como condenar a desistência dos mortos. Redundante.

5 de janeiro

Estamos sempre a aprender. Janto com amiga em restaurante de Lisboa. Restaurante simpático, com cozinha decente e, pormenor fundamental, sem o mais leve vestígio de música ambiente. A conversa levita com a segunda garrafa de vinho.

Subitamente, surge em cena o "garçon", que me informa das horas. "São 10 e meia", diz ele, sem eu ter perguntado coisa alguma. Faço cara de espanto e o rapaz acrescenta que o "turno" das 10 já tinha começado. O turno?

Parece que sim. Existe moda entre os restaurantes da moda para servirem em três turnos. Quem chega às 8, tem de partir às 10. Quem chega às 10, tem de partir à meia-noite. Quem chega à meia-noite, tem de partir às 2 da manhã. Quem chega às 9, às 11 e à 1, suspeito, não come, ou come apenas meia dose.

Sorrio por gentileza, peço a terceira garrafa e confirmo a minha indisponibilidade para deixar a mesa. Vem o gerente. O gerente repete a história dos turnos. Eu digo que já conheço a história dos turnos e não estou disposto a entrar no jogo. Ele diz que são as regras da casa. Eu digo que são as regras de uma casa de prostitutas, não de um restaurante para pessoas civilizadas. E que viesse a polícia. Para me arrancar da mesa.

A polícia não veio. Mas veio a terceira garrafa. Deixei o restaurante depois da meia-noite. Com uma pergunta na cabeça: por que motivo as pessoas permitem que os restaurantes modernos as tratem como gado?

8 de janeiro

Impossível trabalhar em casa. Preparo uma entrevista ao ator Raul Solnado para a edição portuguesa da revista "GQ". Quem é Raul Solnado? Leitores brasileiros de provecta idade não precisam de explicações: na década de 60, Solnado fez sucesso no Brasil com o seu humor deliciosamente "non sense". E ficou célebre uma resposta do ator português a Hebe Camargo. "Vocês também contam piadas de brasileiro?", perguntava a apresentadora em programa de tv. Solnado, um gênio nas pausas e nas perplexidades, saboreou a provocação e, segundos depois, respondeu, impassível: "Você acha que é preciso?"

Sim, Solnado ficou sobretudo como ator cómico. Mas o meu Solnado, curiosamente, está sobretudo nos papéis dramáticos que o ator construiu no cinema: em "Dom Roberto", por exemplo, filme crucial para a renovação do cinema lusitano ainda antes do 25 de Abril; e, naturalmente, como o solitário inspector Elias, em "Balada da Praia dos Cães", filme de José Fonseca e Costa que adaptava o romance homônimo de José Cardoso Pires, escritor pouco lido no Brasil mas que é, juntamente com Agustina Bessa-Luís, o único romancista verdadeiramente grandioso da literatura portuguesa contemporânea.

Mas divago. Dizia que é impossível trabalhar em casa porque moro a dois passos da embaixada israelense em Lisboa. E as ruas foram tomadas de assalto por manifestantes pró-palestinos que gritam há duas horas as maiores obscenidades. Lá pelo meio, existem cartazes onde "nazismo" e "holocausto" são ostentados sem um pingo de vergonha. Ou, melhor, sem um pingo de conhecimento histórico. Porque é sobretudo a ignorância histórica que perturba nos conflitos recorrentes do Oriente Médio. Na cabeça das brigadas, os judeus aterraram em 1948 na Palestina, roubaram a terra dos árabes e até hoje oprimem as populações de Gaza e da Cisjordânia. Nada do que sucedeu realmente antes de 1948, no próprio ano de 1948, em 1967 ou em 1973 os perturba. Camp David, no ano 2000, é um mistério para eles.

Talvez por isso eu evite discutir o assunto. Nos últimos dias, convidaram-me para vários debates sobre a situação em Gaza. Debates públicos, alguns televisivos. Recusei todos: quando perguntava pelos nomes dos outros membros do painel, descobria que havia sempre um fanático anti-semita lá pelo meio e eu, com honestidade, não tenho tempo nem cabeça para aturar lunáticos. E escrevo "fanático anti-semita" no sentido próprio do termo. Podemos discordar das ações do governo israelense. Eu discordo de várias, a começar pela construção de colonatos, que cheguei a visitar "in loco".

Mas o "fanático anti-semita" não é aquele que critica Israel. O anti-semita é, como qualquer anti-semita, aquele que mente e deturpa para promover a destruição de judeus.

A mentira e a deturpação estão nos "Protocolos dos Sábios do Sião", o documento forjado pelas autoridades czaristas que "comprovava" as intenções judaicas de dominação do mundo, um excelente pretexto para perseguir e matar judeus ainda no século 19. A mentira e a deturpação, dois séculos depois, estão agora na negação da natureza genocida do Hamas, uma força terrorista financiada e treinada pelo Irã que tem como propósito, constitucionalmente assumido, o extermínio de Israel. Quem discute o problema de Gaza e omite este fato basilar, ou seja, o fato de uma das partes nem sequer admitir a existência da outra, peço desculpa, não passa de um reles anti-semita.

10 de janeiro

Assisto a "Changeling/A troca", o último Clint Eastwood disponível. Converteu-se em cliché afirmar que Eastwood é o mais "clássico" dos cineastas "modernos". Não sei exatamente o que significa essa titulatura e sempre desconfiei, em História da Arte, de rótulos "progressistas": formas preguiçosas de classificação que encaram a arte com o mesmo tipo de espírito cumulativo que preside à contabilidade das ciências. Eastwood é um "clássico" como, por exemplo, John Ford? Mas Ford, mil perdões, é incomparavelmente mais "moderno", estética e moralmente falando, do que qualquer outro diretor em atividade.

Melhor dizer que Eastwood é um dos maiores diretores vivos, sem classificação cronológica; uma classificação que, além de redutora, é enganadora: Eastwood pode preferir formas narrativas mais convencionais, mas isso não faz dele um diretor "convencional". Basta relembrar o início de "A troca", filmado com perturbante elegância elegíaca: a relação entre a mãe e o filho, e o presságio de tragédia que acompanha o último plano da criança quando esta, à janela, vislumbra a mãe a partir para um trabalho inesperado. É a última vez que ambos se vêem e nós, mesmo sem conhecer o resto da história, sabemos disso: a marca do gênio está sempre na sugestão do inaudito.

A criança desaparece, sim, e o filme converte-se, como usualmente na obra de Eastwood, numa tentativa de reconstituição do equilíbrio perdido. Essa busca essencial está no rosto e na determinação da mãe (notável Angelina Jolie) como antes estivera na violência punitiva de William Munny (em "Os imperdoáveis"), na renúncia de Francesca (em "As pontes de Madison"), no ato terminal e compassivo de Frankie (em "Menina de ouro"), no homicídio instintivo do pequeno Philip (em "Um mundo perfeito").

Mais do que "clássico" ou "moderno", talvez Eastwood seja um diretor permanente e intemporal. Porque permanente e intemporal é essa inquietação de encontrar um princípio de justiça quando todos os outros princípios parecem ausentes ou perdidos.

11 de janeiro

Uma das experiências mais fascinantes da existência humana é atender o telefone às 6 da manhã, quando os comprimidos para a insônia começavam a fazer efeito, e descobrir que o telefonema foi engano. Claro que existe uma experiência ainda mais fascinante: é a mesma pessoa voltar a telefonar 15 minutos depois, quando o nosso corpo e a nossa mente já regressavam ao seu delicioso limbo. E ser novo engano.

Aconteceu hoje, ou seja, há uma hora, e eu permaneço sentado na cama, com a terrível sensação de que o sono não volta e que a pessoa responsável por me arruinar o domingo jamais será punida pela leviandade.

E então imagino como tudo seria mais justo se existisse um mecanismo no próprio telefone que nos permitisse eletrocutar a pessoa do outro lado da linha. Nada de violento, apenas uma descarga terapêutica que a ensinasse a pensar com toda a cautela se o número de telefone é o correto e se telefonar às 6 da manhã é avisado.

Infelizmente, a tecnologia nunca está onde é precisa.

João Pereira Coutinho é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

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