Pensata

João Pereira Coutinho

26/01/2009

Ateus, poetas & messias

13 de janeiro

A estupidez humana não cessa de me espantar. Leio na imprensa do dia que uma associação "humanista" da Grã-Bretanha lançou em Londres uma campanha pública para defender a provável inexistência de Deus. A ideia foi escrever nos ônibus da cidade duas frases de arrasadora profundidade filosófica: "Deus provavelmente não existe. Por isso, deixa de te preocupar e aproveita a vida".

A tese espanta, não apenas pela infantilidade que a define --mas pela natureza ilógica que a contamina. Se Deus não existe, haverá necessariamente motivos para celebrar?

Os mais radicais "philosophes" do século 18 concordariam que sim. O próprio projeto iluminista, na sua crítica à instituição religiosa como autoritária e obscurantista, defendia que a libertação dos Homens passava pela libertação do divino. Nem todos os "philosophes" eram ateus, é certo: Rousseau ou Diderot, impenitentes "deístas", não são comparáveis a La Mettrie ou Helvétius. Mas o iluminismo continental abriria a primeira brecha na cultura ocidental, ao retirar a Fé do seu trono e ao coroar a deusa Razão.

Foi esse gesto primordial que tornaria possível as devastadoras críticas posteriores do trio maravilha (Feuerbach, Marx e Freud). Deus criou os Homens? Pelo contrário: Deus é uma criação dos Homens por razões várias e todas elas racionalmente explicáveis.

Os Homens criaram Deus por temerem a sua própria mortalidade (Feuerbach). Os Homens criaram Deus por contraposição às condições materiais das suas existências precárias (Marx). Os Homens criaram Deus por puro sentimento de culpa: parricidas arrependidos, eles buscam ainda uma autoridade perdida; Deus é o "fétiche" infantil de quem se recusa a viver uma vida adulta (Freud).

Infelizmente, aparece sempre alguém para estragar a festa. Falo de Doistóievski, claro, disposto a contrariar o otimismo liberal da burguesia russa oitocentista, para quem Deus era um empecilho de modernidade. Pela boca de Karamazov, Dostoiévski formularia a pergunta que Feuerbach, Marx, Freud e também Nietzsche se recusaram a enfrentar: e se a ausência de Deus significa também a ausência de qualquer limite ético para a acção humana?

Essa possibilidade seria confirmada no século seguinte: um século devastado por grandes construções coletivistas, utópicas e rigorosamente ateias que libertaram um fanatismo e uma crueldade indistinguíveis do fanatismo e da crueldade das antigas religiões tradicionais.

Quando os Homens não acreditam em Deus, eles não passam a acreditar em nada; eles acreditam, antes, em qualquer coisa, como dizia profeticamente Chesterton. Antes de festejarmos a provável inexistência do barbudo, convém saber o que essa coisa será.

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15 de Janeiro

Nunca fui cliente de Mickey Rourke. Olho para a filmografia e não encontro um único filme --um único-- que mereça respeito e aplauso. Almas caridosas falam de "Barfly/ Condenados pelo vício", com Faye Dunaway em fase descendente. Não vi. Ou, melhor, vi. Mas preferi esquecer entretanto: Charles Bukowski não é tema de conversa entre pessoas civilizadas. E a figura de Rourke, na sua rebeldia ensebada e juvenil, sempre me provocou certa urticária instintiva.

Talvez por isso a entrevista do próprio à edição britânica da revista "GQ" seja uma surpresa. Rourke, pelos vistos, ressuscitou recentemente com filme de Darren Aronofsky, onde é lutador de "wrestling" em decadência física e existencial. Uma espécie de metáfora autobiográfica sobre o próprio Rourke, que depois de sucesso moderado caiu na solidão, na vagabundagem, no boxe sadomasoquista e até na deformação física.

Agora, com "The Wrestler", venceu o Globo de Ouro e prepara-se para atacar o Oscar. Mas a minha admiração não está no filme, que ainda não vi. Está na sensatez de Rourke, que ao longo da entrevista foi disparando confissões brutais e honestas, sem sombra de pose ou vulgaridade.

Conta ele que, desempregado e só, entrava nas lojas e havia sempre alguém que perguntava: "O senhor não costumava ser o Mickey Rourke?" O tempo verbal dessa frase dói mais do que todos os murros levados por Mickey no ringue, conta ele.

E conta mais: quando questionado sobre política, o homem é modesto nas suas avaliações, ao contrário dos seus colegas de profissão. Palavras do próprio Rourke: "Eu acho que os atores devem calar a boca sobre política porque eles tendem a ser moralistas ignorantes, sempre prontos a adotar a moda liberal do momento".

Mickey Rourke é a prova viva de que levar tareias regulares melhora a performance intelectual. Pais do mundo inteiro, anotem.

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17 de janeiro

E por falar em pais: lembro-me que os meus ameaçaram sovar-me uma única vez na vida. Aconteceu quando descobriram que eu tinha por hábito andar de pijama o dia todo. Não apenas dentro de casa. Mas fora também. Acordava, despia o pijama nocturno e vestia um diurno. Depois calçava-me, enfiava a gabardine e saía para o mundo.

Eu tentei defender-me. Disse que o pijama era a peça de vestuário mais confortável que existe. E a mais esteticamente perfeita, sobretudo se lembrarmos os pijamas clássicos com calças compridas e casaco de botões. Em desespero de causa, citei mesmo o exemplo de Julian Schnabel, um diretor estimável e pintor de sucesso, que praticamente não veste outra coisa.

Os meus pais não se convenceram. E quando a senhora que vende jornais no bairro lhes perguntou se eu estava doente ("o filho anda por aí de pijama", disse ela, preocupada), eles resolveram fazer o ultimato: o pijama ou os dentes. Cobarde como sou, despi o pijama e comecei a usar roupa de gente.

Felizmente, existem sinais de que a indústria da moda veio ao encontro da minha visão profética: os últimos desfiles das grifes Prada e Dolce & Gabbana, nas suas coleções Primavera/Verão, oferecem modelos de ambos os sexos com belíssimos pijamas para uso diário. Vejo as fotos e quase choro de alegria: pijamas listados, em seda, alguns com cinto no mesmo tecido. Cortes clássicos. Cores simples e intemporais.

O autor do artigo garante que, nos próximos tempos, será possível encontrar seres humanos de pijama em lojas ou restaurantes. Não tenho dúvidas. E, com a mão sobre o Livro, garanto que serei um deles.

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19 de janeiro

Celebro o bicentenário de Edgard Allan Poe (1809-1849) com a curta biografia que Peter Ackroyd (quem mais?) lhe dedicou. Intitula-se "Poe: A Life Cut Short" ("Poe: Uma vida abreviada", Chatto & Windus, 170 págs.). É a melhor introdução ao escritor que conheço.

Ackroyd, com talento e ironia habituais, fornece o básico: nascido em Boston, corria 1809, a vida de Edgar Allan Poe foi uma sucessão trágica de abandonos (o pai, quando Poe tinha 2 anos), perdas (a mãe, aos 3), pobreza (toda a vida), alcoolismo (intermitentemente) e a morte precoce e assaz misteriosa (aos 40, em Baltimore, a cidade de H.L. Mencken). Mas nesse curto período, ele foi o mais importante jornalista e escritor da América de inícios do século 19.

Diz Ackroyd que Poe praticamente lançou as sementes de géneros que seriam fartamente explorados por nomes posteriores: a história policial, que Arthur Conan Doyle aprimorou, ou o conto fantástico, que fariam as glórias de Jules Verne ou H.G. Wells, são apenas dois exemplos.

Mas Ackroyd acerta, também, ao defender a qualidade da poesia de Poe, desprezada no seu tempo; e a forma como o escritor se serviu de um inusitado classicismo formal para erguer narrativas onde o extraordinário adquire contornos de terrível verosimilhança. De fato, ler ou reler "A queda da casa de Usher" é, ainda hoje, uma experiência estética e metafísica que só voltaríamos a experimentar com Kafka, um século depois.

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20 de janeiro

Barack Obama é insuportável em sua vaidade megalómana. Sim, o momento é histórico: não é todos os dias que um negro, nascido em 1961, chega à Casa Branca. Mas o que me incomoda em Obama é a mitomania de alguém que se considera abertamente um "herdeiro espiritual" de Lincoln. Mais: alguém que se considera "herdeiro espiritual" e imita vários gestos do velho Abe.

É a viagem até Washington de trem. É a mesma Bíblia que serviu de juramento em 1861. É a imitação dos pratos onde foi servida a primeira refeição presidencial de Lincoln. Sem falar de outras manobras do histórico presidente, que Obama repetiu: o convite a Hillary Clinton para Secretária de Estado parece uma cópia do convite de Lincoln a William Steward para o mesmo posto. Steward, tal como Hillary em relação a Obama, foi o adversário de Lincoln na luta para a indicação partidária.

É esse revivalismo um pouco "kitsch" que explica, em parte, os dois milhões que assistem "in loco" à tomada de posse de Obama. Não é saudável. A multidão é burra, alguém dizia. A multidão é crédula, digo eu: Obama chega à Casa Branca com duas guerras no Oriente Médio e a economia desfeita em pedaços. Sem falar de assuntos menores (Irã, Paquistão etc.) que chegam para quebrar qualquer otimismo infundado.

O próprio Obama parece entender a realidade melhor do que os seus fiéis e, no discurso inaugural, preferiu não repetir as proezas retóricas ou as promessas messiânicas do passado. Houve críticas a Bush (suaves e esperadas). Mas o discurso foi banal e poderia ser subscrito por qualquer outro presidente, a começar pelo derrotado McCain.

No fundo, Obama parece ter abandonado o radicalismo passado, que o seu currículo senatorial ilustra e a campanha comprovou, para se aproximar do consenso pragmático que o momento exige. Tirando algumas medidas simbólicas que se esperam nos próximos dias (fechamento de Guantánamo, fim da tortura, etc.), o gabinete do novo presidente, sobretudo na Economia (com Larry Summers e Tim Geithner) e na Defesa (com Robert Gates e Jim Jones), é a perfeita imagem de alguém que, em tempos difíceis, prefere não inventar. Brindo a isso.

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21 de Janeiro

Como se previa, Obama confirma o fechamento de Guantánamo a curto prazo, a eliminação de prisões secretas da CIA e o fim da tortura nos interrogatórios a suspeitos de terrorismo. Nada a opor: Guantánamo foi um erro e a tortura não deveria ser tolerada em países civilizados.

Infelizmente, as primeiras medidas de Obama não respondem a algumas inquietações e, pior, oferecem outras de brinde.

Para começar, Obama não esclarece o que tenciona fazer com os detidos de Guantánamo. Falo, em especial, dos detidos realmente selváticos que lá estão, como Khalid Sheik Mohammed, um dos cabecilhas do 11 de setembro. É provável que Sheik Mohammed detenha informações valiosas para a guerra contra o terrorismo. Que fazer com ele e outros como ele? Julgá-los em tribunais federais e jogar no lixo informação vital? Obama nada diz. Promissor.

Como também é promissor a possibilidade de, em certos casos, Obama permitir o uso de "técnicas de exceção" no interrogatório a terroristas valiosos. Na prática, isso significa que o presidente tortura quando entender, quem entender, onde entender.

Bush deve estar a rir no seu rancho do Texas.

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22 de janeiro

Curiosa história: leio no londrino "The Daily Telegraph" que Josef Mengele, o médico nazista que presidiu aos horrores "científicos" do campo de extermínio de Auschwitz entre 1943 e 1945, passou pelo Brasil durante o seu exílio. Mais propriamente pelo município de Cândido Godói, no Rio Grande do Sul, onde desenvolveu algumas experiências com as mulheres do local. As experiências destinavam-se a produzir o maior número possível de gêmeos, uma velha quimera do Terceiro Reich que Mengele tentou promover ainda na Alemanha de forma a acelerar a criação da raça ariana perfeita.

Com a derrocada da Alemanha, Mengele fugiu para a Argentina e, depois da captura do camarada Eichmann no país, para o Paraguai. A partir de 1963, Mengele cruzaria várias vezes a fronteira, visitando Cândido Godói com frequência e sucesso. As experiências de Mengele no Brasil, reveladas pelo historiador argentino Jorge Camarasa em "Mengele: The Angel of Death in South America" ("Mengele: o anjo da morte na América do Sul"), deram os seus frutos: habitualmente, 1 em cada 80 mulheres grávidas tem gêmeos; em Cândido Godoi, a média é 1 em 5. Não admira, por isso, que o município se promova como "A Capital dos Gêmeos".

Um fenômeno, sem dúvida. Mas um fenômeno com desconfortável paternidade. Se o historiador argentino tiver razão, haverá ainda motivos para festejar?

João Pereira Coutinho é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

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