Pensata

João Pereira Coutinho

09/02/2009

Animais, músicos & apaixonados

25 de janeiro

O escritor George Steiner, em entrevista ao jornal espanhol "El Pais", teceu alguns comentários racistas que estão a incomodar a "intelligentsia" britânica. Disse Steiner, em seu pessimismo antropológico, que os seres humanos têm um lado obscuro, violento, irracional, profundamente incivilizado, que seria hipócrita esconder ou negar.

E, a título de exemplo, Steiner cita o cenário hipotético de uma família de negros jamaicanos que se instalaria junto da sua pacata casa de Cambridge, com reggae e música rock a tocar todo o dia e os preços imobiliários a descerem pelas redondezas. Para Steiner, isso bastaria para ele perder o verniz.

Não discordo inteiramente de Steiner e só eu sei o que passo nos dias de verão, em que ter casa junto à praia é pecado suficiente para apanhar com as animações noturnas, e amplificadas, com que a prefeitura local gosta de entreter a população. Mas não deixa de ser interessante, e lamentável, que o sábio George tenha escolhido uma família de negros para personificar o seu pesadelo. Negros por que?

Talvez eu esteja a exagerar. Mas existe aqui o mesmo tipo de desconforto que senti quando, há uns tempos, ao ler o seu último livro ("My Unwritten Books"), soube que o autor seria capaz de tudo, inclusive atraiçoar a família e os amigos, se alguém lhe torturasse o cão. Não que eu deseje provações terríveis ao cão de Steiner; mas, ao contrário do que ele pensa, a pretensa superioridade dos animais sobre os humanos não nos torna mais "profundos" ou "enigmáticos". Simplesmente mais cruéis.

Eu seria incapaz de atraiçoar família ou amigos por causa do meu gato. E relembro que o Terceiro Reich tinha a mais pesada legislação da Europa para quem maltratasse animais domésticos. Aos humanos não estava reservado o mesmo tipo de simpatia.

*

27 de janeiro

Assisto a "Reichsorchester: The Berlin Philarmonic and the Third Reich" em DVD. Como o título indica, é um documentário de Enrique Sánchez Lansch sobre a Filarmônica de Berlim durante o nazismo. Gravações de época. Fotos de arquivo. Entrevistas com alguns músicos que atravessaram o Reich. E, nas palavras dos próprios, ou dos filhos dos próprios, a certeza de que a Filarmônica nunca foi uma "organização nazista", mas antes um corpo artístico e "apolítico".

Difícil acreditar nessa versão. Se esquecermos que, depois de 1945, a Filarmônica passou pela sua fase de "desnazificação" (como o resto da sociedade alemã), a Filarmônica viveu, cresceu e atuou sob a proteção do Ministério da Propaganda. Que o mesmo é dizer: Goebbels poupava os músicos dos horrores da guerra desde que eles continuassem a exibir-se pela Alemanha e, claro, por alguns países "amigáveis", ou neutrais, como Espanha ou Portugal. Quem, em juízo perfeito, recusaria esse pacto com o diabo?

Não atiro a primeira pedra. Os músicos da Filarmônica, como o resto da sociedade alemã, não viam o que não queriam ver: vizinhos que desapareciam da noite para o dia; perseguições antissemitas; cidades destruídas; mortos e estropiados. Não admira que o momento mais impressivo do documentário aconteça quando um velho músico, já depois da reunificação alemã, visita a aldeia olímpica de Berlim e recorda o concerto ali ocorrido nos últimos meses da guerra, quando a derrota alemã era certa e os soviéticos já vinham a caminho.

Conta o velho músico que, nessa noite, enquanto tocava, olhou para o auditório e viu o espaço povoado por figuras fantasmagóricas: soldados recém-chegados da frente, com as marcas físicas da destruição. Sentimentos contraditórios: alívio, porque a arte lhe permitiu sobreviver com o corpo intacto; mas culpa, porque a alma não estava propriamente intacta. E um pensamento consolador: apesar do inferno, os soldados ali presentes fechavam os olhos e, por uma hora que fosse, entregavam-se à música e ao esquecimento.

De fato: música e esquecimento. A única combinação que resiste e persiste, com guerra ou sem ela.

*

5 de fevereiro

Não aprecio a chuva. Prefiro o frio. Dias limpos, solares e frios. Mas admito que a chuva tem os seus encantos. Literários, por exemplo: Graham Greene podia ser um indefectível dos trópicos, mas a paixão de Bendrix por Sarah, em "The End of the Affair", seria impensável nas Caraíbas. Ninguém tem ciúmes do sol. Temos ciúmes da chuva porque só a chuva toca verdadeiramente a pele da mulher que amamos. Corrijo: da mulher que amamos e de todas as mulheres que poderemos amar um dia.

Sei do que falo: caminho sob chuva pelas ruas de Lisboa, olhos postos no chão. E quando me aproximo de alguém na calçada, levanto o olhar e encontro um rosto feminino que me fita do outro lado de uma cortina de água. Anônimos que somos e tão cúmplices que nos tornamos. Quando chove, todas as mulheres com quem me cruzo parecem-me sempre belas e desejáveis e até disponíveis. A chuva enobrece as mulheres.

João Pereira Coutinho é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

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