Pensata

João Pereira Coutinho

27/07/2009

Onde está toda a gente?

LISBOA - O mundo avança. Eu fico. Há dez anos, na companhia de amigos, resolvi fundar um blog. Eu não sabia exatamente o que era um blog. Lia Andrew Sullivan, no seu "Daily Dish", e apreciava a capacidade do bicho para publicar em cima do acontecimento. Eis o sonho de qualquer colunista: emitir opinião em cima da ocasião. Bom slogan. Vou registar.

Então avançamos. Em Portugal, os blogs eram poucos. Blogs de opinião, praticamente inexistentes. Escolhemos nome, em homenagem a Manzoni ("A Coluna Infame"), e durante dois anos, as noites eram nossas. Os dias eram dos leitores. Divertimentos? Mil. Polêmicas? Bastantes. O próprio blog terminou em polêmica e a polêmica, de tão sanguínea, chegou aos jornais.

De modos que: em 2002, talvez 2003, despedi-me da blogosfera. Verdade que nunca vivi intensamente o fenômeno. Uma brincadeira é uma brincadeira. Regressei aos livros e, claro, à imprensa. A internet é um parque infantil. Quem deseja viver eternamente num parque infantil?

A resposta correta é: toda a gente. Dez anos depois, olho em volta e estou mais só do que nunca. Entendi o fato depois de um jantar lisboeta onde todos falavam de mundos que eu ainda não visitei. Facebook. Twitter. Esses são apenas os tradicionais. Depois existem os outros, com nomes impronunciáveis e virtualidades idem.

Parece que toda a gente "está" no Facebook e "está" no Twitter. Atenção ao verbo "estar": fisicamente, os novos internautas podem estar sentados a uma mesa de jantar. E sorriem. E conversam. E parecem gente. Mas, na verdade, eles não "estão" onde nós estamos. Onde eu estou. Eles habitam o espaço virtual, onde desenvolvem amizades virtuais, inimizades virtuais. Sem falar de amores ou traições rigorosamente virtuais. Não sei se existem casamentos, divórcios ou funerais virtuais. É provável.

Mas o pior de tudo é ser questionado. E eu? "Estou" no Facebook? "Estou" no Twitter? Respondo que não "estou" em nenhum. Alarme. Alguém comunica aos restantes que está um ser humano sentado à mesa. Olhares de estupefação e náusea. A minha vontade era responder: mas "estou" aqui, em carne e osso. Podem tocar.

Erro meu. Se não "estou" na internet, eu não "estou" em lado algum. Eu simplesmente não existo. Ou existo, sim --mas numa cidade deserta, como o último sobrevivente de uma catástrofe nuclear.

Regresso a casa. Derrotado. Adormeço no sofá. E no sofá acordo com um ritmo insistente, quase musical, no vidro da janela. Levanto-me. Inspeciono. Uma gaivota. Uma gaivota de Lisboa, que nos fados de Amália costumam trazer no bico o próprio céu da cidade. Abro a janela. Existe uma brisa quente que sobe do rio e um silêncio de tumba que paira sobre os telhados.

Saio para a rua. Não existe rua como nos dias normais. Carros parados. Lojas fechadas. Lisboa foi de férias e não voltou mais. Desço a avenida da Liberdade pelo corredor central, com a gaivota a saltitar de árvore em árvore. Sigo a ave pela Baixa deserta, até ela pousar no ombro de uma estátua. É Fernando Pessoa, à mesa de uma café, e eu lamento pela primeira vez nunca ter pedido a um turista de passagem para me tirar um retrato com a figura do poeta. Agora é tarde. Já não existem turistas. E, olhando melhor, também já não existe poeta. A estátua levantou-se para descer o Chiado.

Sigo o Fernando. Alguém me segue a mim. Nos sonhos, nunca devemos olhar para trás. Eu olho. Eu vejo. As estátuas de Lisboa marcham em direção ao rio. Um exército de pedra e ferro que abandonou plintos e colunas. O nosso Eça. O vosso dom Pedro. E, claro, o Marquês de Pombal a liderar.

Desaguamos no Terreiro do Paço, com o Tejo a servir de cenário. Um tema antigo da Broadway, sem explicação ou aviso, começa a soar na praça. Sorrio. Reconheço a letra, reconheço o ritmo. E ensaio um número de sapateado.

As estátuas gostam do que ouvem, gostam do que veem, e imitam os passos. A calçada treme como as tábuas de um palco. Eu e as estátuas avançamos e recuamos, em coreografia improvisada, como num filme de matinê americano. Só Bocage parece mais interessado em espreitar para o decote de uma rainha pia.

E o milagre acontece. As janelas de Lisboa abrem-se com a música. As portas também. Milhares de ausentes juntam-se agora ao bailado no centro da praça. É a cidade que regressa.

Exausto com o número, abandono o palco e sento-me à mesa do Martinho da Arcada. Com o poeta que inaugurou a marcha. Enchem-se copos. Fazemos um brinde. Bebemos em paz. E então reparo que a gaivota continua a bicar na janela da minha sala. Olho para o poeta. Alarmado. O poeta ri. E depois informa, em tom solene, que ainda há tempo para uma última rodada antes de eu acordar.

João Pereira Coutinho é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

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