Pensata

João Pereira Coutinho

07/09/2009

Todos os homens serão castigados

Não existe maior mal do que acreditar no Mal. Eis a tese moderna dos homens modernos: depois da vitória iluminista sobre as forças do obscurantismo religioso, o Mal foi finalmente domado. Ou, pelo menos, transformado: pela reflexão sociológica, de recorte marxista; ou pelas ciências do corpo e da mente, que trataram de o "medicalizar".

Os homens não são maus; os homens não cometem actos malignos porque escolhem livremente esse caminho. É a sociedade que os deforma: infâncias de privação ou abuso que determinam vidas adultas de desumanidade e errância.

E quando não é a sociedade, é a doença: os piores actos humanos explicam-se por um particular desequilíbrio químico, neurológico ou psicológico que é possível calibrar ou emendar.

Mario Sabino, que publicou recentemente "A Boca da Verdade" (Record, 143 págs.), livro de contos onde, ironia das ironias, a Verdade não existe, nunca comprou essa optimista versão dos factos. Conheci Sabino o ano passado, ao ler a sua primeira obra de ficção, "O Dia em que Matei Meu Pai" (Record, 221 págs.). Foi amor à primeira vista: ali estava um dos textos mais brutais da moderna literatura brasileira, dominado por um narrador amoral que mata o progenitor por razões que a razão desconhece. E que nenhuma tese, ideologia ou especialidade médica será capaz de explicar inteiramente. O interesse de "O Dia em que Matei Meu Pai" começa aqui: na forma como testamos e recusamos todas as hipóteses possíveis para explicar o impassível.

Acreditamos que o assassino matou para vingar uma vida de humilhações desde a infância. Acreditamos mal. Acreditamos que o assassino matou porque se afastou hereticamente da religião cristã. Acreditamos mal. Acreditamos que o assassino matou porque enlouqueceu com uma "vontade de poder" funesta, tal como Raskolnikov em suas leituras heróicas. Acreditamos mal. E até acreditamos que o assassino matou porque, de forma narcísica, ele precisou de concretizar o mito edipiano de forma literal e pessoal. É uma boa hipótese: o narcisismo é vício caro na ficção de Sabino e "O Antinarciso" (Record, 127 págs.), livro de contos que antecede "A Boca da Verdade", é dominado por essa incapacidade de sairmos de nós próprios; de abandonarmos a imagem que nos fascina e aprisiona. Mas, uma vez mais, acreditamos mal.

O homicida de "O Dia em que Matei Meu Pai" mata com o exacto tipo de naufrágio existencial com que Mersault mata o árabe em "O Estrangeiro". A evocação de Camus, aliás, não é casual. Em "O Estrangeiro", o narrador inicia a sua "via dolorosa" confessando desconhecer o dia exacto em que a mãe morreu. As primeiras linhas de "O Dia em que Matei Meu Pai" estabelecem de imediato essa gélida indiferença, só acessível aos moralmente indiferentes: o dia estava limpo, diz o homicida; ou talvez estivesse cinzento, diz logo a seguir. Quem sabe? Mais: quem se interessa? A verdade, se existe uma verdade, é que jamais seremos capazes de saber o mistério de que somos feitos e, tantas vezes, desfeitos.

É precisamente esse o tema central em "A Boca da Verdade": o mistério da nossa condição imperfeita. E não é por acaso que Sabino elege Eugenio Montale para inaugurar o livro em forma de epígrafe. Tal como Montale, Sabino sabe que as palavras serão sempre incapazes de definir a alma humana. Ao escritor, está reservado um papel mais modesto: tentar algumas "sílabas secas" que nos permitam dizer, pelo menos, não aquilo que somos ou queremos --mas o que não somos e não queremos.

É com "sílabas secas", embora povoadas por um humor destrutivo e cruel, que desfila em "A Boca da Verdade" uma galeria de seres risíveis e infelizes: um cardeal que se descobre ateu e, pelos desígnios insondáveis do divino, acaba eleito Papa; o defunto que deixa dois testamentos à descendência, para serem lidos com 35 anos de distância - o primeiro, salpicado com as piedades sentimentais do costume; o segundo, com os indizíveis segredos que normalmente todos preferimos levar para a cova; sem esquecer o esteta pedante que se descobre tão vulgar como todos os outros seres vulgares que o rodeiam e que ele despreza.

Ler Mario Sabino não é apenas encontrar um autor que, ao contrário de grande parte da literatura brasileira actual (e até portuguesa), domina e utiliza o humor sem complexos de seriedade ou culpa. É também uma forma de nos confrontarmos com a irredimível pequenez humana. Porque, como o próprio afirma em conversa que podem ler a seguir, a única moral que interessa é aquela que nos deveria irmanar na nossa insignificância.

*

[João Pereira Coutinho] - Em "A Boca da Verdade", você afirma expressamente que literatura não é psicanálise. E, no entanto, a sua ficção pretende continuamente mostrar o abismo que existe entre as "máscaras" e a "verdade". Isso não é uma forma de psicanalisar o mundo?

[Mario Sabino] Freud disse que o objetivo da psicanálise era fazer com que o sujeito saísse da sua miséria neurótica para entrar na infelicidade do mundo. A literatura, tal como a entendo, fala de misérias neuróticas na infelicidade do mundo. É uma porta de entrada, não de saída. Agora, se quiserem me pagar por hora - apenas para escrever livros - o quanto eu pago à minha analista, posso até tentar inventar uma terapia literária.

- É uma boa ideia. Aliás, se fosse possível essa "terapia literária", quais seriam os "tratamentos"?

Acho que essa improvável "terapia literária" estaria no campo da educação social. O primeiro "remédio" seria o adestramento dos brasileiros - estamos falando de Brasil, imagino - na norma culta urbana. Não digo reinstaurar a mesóclise, mas ao menos inculcar a idéia um tanto revolucionária de que é preciso haver pronomes nas frases - e que as frases devem ter sujeito, verbo e predicado, necessariamente nessa ordem.

- E você já conseguiu sair da sua "miséria neurótica" para entrar na "infelicidade do mundo"?

Digamos que, em relação à neurose, estou em regime semi-aberto.

- E a literatura teve algum papel no processo?

Sim, só escrevo porque consegui sair da solitária. Era um "écrivain manqué".

- Voltando às "máscaras" e à "verdade": você não acha que as "máscaras", apesar de tudo, são importantes? Ou será preferível a "verdade" acima de tudo?

A "verdade" referida nos meus livros é sempre com aspas. Verdade com aspas (e, em geral, com maiúscula) é como unicórnio: não existiu, não existe, nem jamais existirá. Mas existem ótimas propagandas enganosas por aí. De vez em quando, até finjo acreditar em alguma. Agora, verdade sem aspas e com minúscula, sem conotação metafísica, eu topo, claro. É a verdade do mensalão e das prostitutas do Berlusconi, por exemplo.

- A "Boca da Verdade" prolonga temas que você persegue desde "O Dia em que Matei Meu Pai", como "a dor de existir". Você acha que seria mais fácil suportar essa dor se Deus fosse, para as suas personagens, uma possibilidade?

Deus foi, durante séculos, uma ótima idéia. Resultou em pintura, escultura, arquitetura e filosofia magníficas. Que os mais céticos sucumbam de vez em quando a tais construções, e esqueçam um pouco as suas dores, já é um milagre.

- E quando essas construções não funcionam, o que nos resta?

A superstição do populacho, a histeria dos peregrinos, o mau teatro dos evangélicos, os padres pedófilos, "O Código da Vinci", o desespero na hora da morte.

- Voltando a Deus: um dos melhores contos de "A Boca da Verdade" é o relato do cardeal que, apesar de ateu, chega a Papa. E você, como narrador, formula a hipótese: não será o cepticismo religioso um produto do conhecimento crescente? Para o cardeal, a resposta é afirmativa. E para você?

Como já disse numa entrevista, a beleza da fé não está em crer, mas em buscar crer. Assim, vejo certa beleza também na tentativa de crer nessa fé laica chamada razão. Quanto ao cardeal do meu conto, ele deixou de acreditar em Deus não por conhecimento crescente, mas por vocação descendente.

- Certo. Mas ele "racionaliza" a sua descrença, procurando justificações mais "intelectuais". Por isso repito: você acha que a fé é incompatível com a razão?

Se você quiser chamar a singularidade original, aquela que explodiu bilhões de anos atrás, gerando estrelas e planetas, de Deus, não tenho nada a ver com isso. Não nutro desprezo por quem tem fé, inclusive porque prefiro ler Santo Agostinho a Richard Dawkins, cujo ateísmo militante soa aos meus ouvidos como as ladainhas das carolas. Mas penso que um mundo melhor seria aquele em que valesse o inverso da idéia de Ivan Karamazov. Ou seja, porque Deus não existe, nem tudo é permitido. Uma moral que nos irmanasse em nossa insignificância frente ao universo seria mais efetiva do que a do homem criado à imagem e semelhança de Deus.

- Outro tema igualmente recorrente na sua ficção é a vulgaridade. E, em particular, a vulgaridade dos ricos - vulgaridade estética, moral, pessoal, etc. Você acha que isso é um facto universalmente verificável ou um fenómeno tipicamente brasileiro? Quero nomes, por favor.

A vulgaridade é universal, mas foi aperfeiçoada no Brasil. Por meio da mais completa falta de vergonha e escrúpulos. Quanto aos nomes, só respondo na presença de um advogado.

- Ainda sobre essa vulgaridade, existe uma observação em "O Dia em que Matei Meu Pai" que subscrevo inteiramente: na vida dos muito pobres e dos muito ricos, o vazio existencial é semelhante. E, no entanto, o seu desprezo pela "classe média" é igualmente feroz. No seu juízo final, quem se salva?

Ninguém. Nem eu, claro.

- No conto "Essência", encontramos duas versões de um testamento: a versão "politicamente correcta" e a versão real (e brutal) do defunto. Se você deixar testamento, qual delas será lida à descendência?

Não deixarei testamento. Mas, se deixasse, seria um só. Diria aos meus filhos que tentassem me esquecer. Não há nada mais belo e saudável do que esquecer os mortos.

- Então falemos deles, dos mortos. E dos vivos. E até dos mortos-vivos. Quem vale a pena ser lido, hoje, no Brasil?

Vivos: Diogo Mainardi, Cristovão Tezza, Miguel Sanches Neto, Raduan Nassar, cada um a seu modo e com seus diferentes propósitos. Mortos: Graciliano Ramos e o Machado contista. No Brasil, não há mortos-vivos, mas os muito vivos. Desses, evito falar.

- Todos os escritores são, primeiro que tudo, leitores. Quais foram os nomes que lhe formaram a cabeça?

Alberto Moravia, Dante Alighieri, Eugenio Montale, T.S. Eliot, Machado contista - e Eça, que é muito, mas muito maior do que Machado. É melhor romancista e não inventou a Academia Brasileira de Letras.

- Presumo, então, que você não ambiciona uma cadeira na Academia...

Só se for a de "leg press" na academia de ginástica.

João Pereira Coutinho é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

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