Pensata

João Pereira Coutinho

05/10/2009

O pedófilo é artista

LISBOA - Deve um homem de 77 anos pagar por um crime cometido há três décadas? Depende do crime. Se falamos de furto ligeiro ou abuso de liberdade de expressão, não existe uma única alma compassiva que não encolha os ombros e mande o sujeito em paz. A velhice, por vezes, já é castigo que baste.

Mas o cenário muda radicalmente quando o homem em questão drogou e violou (vaginal e analmente) uma jovem de 13 anos. Aqui, o meu coração estremece. E as dúvidas, confesso, transformam-se em pó. Não que seja um pudico nessas matérias: posso entender que um adulto se sinta atraído por uma menor, desde que a "menor" em causa demonstre um grau de maturidade sexual e emocional que relativize a questão etária. Mas uma violação é uma violação é uma violação.

O auditório talvez concorde comigo. Mas o mesmo auditório sente dúvidas quando trocamos a expressão "homem de 77 anos" pelo nome "Roman Polanski".

Duas semanas atrás, o famoso diretor polonês foi preso na Suíça e agora corre o risco de ser extraditado para os Estados Unidos. Motivo conhecido: em 1977, na casa do amigo Jack Nicholson, em Los Angeles, Polanski, então com 44, drogou e violou Samantha Gailey, então com 13. Levado a tribunal, e após acordo entre as partes, a acusação abandonou o crime de violação e ficou-se por relações sexuais com uma menor. Polanski aceitou o negócio, confessou o crime e, depois da confissão, fugiu dos Estados Unidos. Nunca mais lá voltou. E agora?

Agora, políticos de toda a Europa e a elite cinematográfica de Hollywood clamam pela libertação de Polanski. Argumentos? Vários. Uns dizem que Polanski já cumpriu a sua pena, ao ser forçado ao "exílio na Europa" durante 30 anos. Outros evocam o passado trágico do homem: a família que pereceu no Holocausto; a sua condição de sobrevivente ao genocídio nazista; o brutal homicídio da mulher, a modelo Sharon Tate, às mãos da quadrilha Manson. E todos relembram que a própria "vítima" já perdoou a Polanski.

Não vale a pena perder tempo com nenhum destes argumentos: o "exílio na Europa" (como se a Europa fosse o Ruanda e Polanski tivesse nascido em Marte); um passado de tragédias pessoais; e até o perdão de Samantha Gailey não alteram a natureza do crime, que nenhuma sociedade civilizada pode ignorar.

Os argumentos em defesa de Polanski servem apenas para iludir, de forma hipócrita, uma verdade essencial: ninguém defenderia Roman Polanski se ele não fosse um "artista". No fundo, ninguém defenderia Polanski se não persistisse entre nós a ideia romântica (no sentido próprio do termo) de que os "artistas" não se submetem ao mesmo código ético e legal que regula a humanidade inteira. Pelo contrário: os "artistas" criam a sua própria moral e, no limite, serão julgados por ela.

Defender Roman Polanski apenas porque ele é Roman Polanski é dizer, implícita e perversamente, que a pedofilia é tolerável desde que o pedófilo dirija filmes.

João Pereira Coutinho é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

FolhaShop

Digite produto
ou marca