Pensata

João Pereira Coutinho

30/11/2009

Relógios e Rousseau

Dizem os cínicos que a Suíça deu duas coisas ao mundo: relógios e Rousseau. Os cínicos devem acrescentar à lista a grande surpresa da semana: contra todas as previsões, os suíços resolveram proibir a construção de minaretes islâmicos no seu espaço nacional. Os minaretes são estruturas arquitectónicas, em forma de torre, que permitem chamar os fiéis para a oração.

Não mais. O Partido do Povo da Suíça, a maior organização partidária do país, resolveu convocar um referendo. E o povo, sempre soberano, rejeitou a "islamização" do seu espaço público. Em certos cantões, e sobretudo com o apoio feminino (por que será?), a rejeição foi esmagadora.

A atitude dos suíços horrorizou a Europa e alguns intelectuais de serviço, disparando da esquerda, acusam os nativos de intolerância extrema. Os suíços têm ódio e medo perante o estrangeiro, dizem os críticos; e assim se explica o repúdio da religião islâmica e da sua expressão arquitectónica, uma atitude incompreensível e até irracional quando sabemos que os muçulmanos representam 5% da população suíça e são, na sua maioria, procedentes dos balcãs e da Turquia, e não necessariamente de países árabes extremistas.

Não pretendo contestar a opinião dos críticos. Sou um conservador liberal. Acredito na separação entre o Estado e a Igreja e, além disso, a liberdade de culto é condição basilar para qualquer sociedade civilizada. É por isso que prefiro viver no Ocidente e não, por exemplo, no Islã.

Acontece que, no meio da novela suíça, dois pormenores parecem escapar aos críticos.

Em primeiro lugar, nenhum deles parece questionar por que motivo os suíços se organizaram para impedir a construção de minaretes mas não, por exemplo, a construção de mais igrejas ou sinagogas.

Acusações de racismo servem apenas para iludir a verdade mais desconfortável: o terrorismo moderno, que teve a sua apoteose com os atentados de Nova York em 2001, não se pratica em nome da Bíblia ou da Torah. Goste-se ou desgoste-se, ele é praticado em nome de uma particular interpretação fundamentalista do Corão. Uma interpretação que muitas mesquitas na Europa, e sobretudo no Reino Unido, promoveram e promovem clandestinamente, adulterando uma vocação que deveria ser espiritual, e não marcial.

Mas existe um segundo pormenor que importa relembrar. Disse no início que a Suíça legou ao mundo relógios e Rousseau. Deixando de parte os relógios, fiquemos com Rousseau. Sobretudo com a sua particular concepção de "democracia direta" (e referendária) que constitui uma das vacas sagradas da esquerda clássica. Se os estados justos são aqueles onde prevalece a "vontade geral", não se percebe por que motivo a "vontade geral" dos suíços horroriza assim tanto os seus herdeiros.

Para quem sempre divinizou a soberania popular, criticar os suíços é coisa de reacionário.

*

P.S.: O colunista vai de férias em dezembro. Regressa dia 4 de janeiro.

João Pereira Coutinho é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

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