Pensata

João Pereira Coutinho

04/01/2010

A história continua

Estava tudo a correr bem. O ano terminava. A década também. Mentira, claro: a década só termina em 2011. Mas entendo a pressa em apressar as coisas: este início de século 21 não deixara saudades. A nossa era, para todos os efeitos, começou com o 11 de setembro de 2001.

A partir desse momento, foi sempre a descer. Terrorismo nos quatro cantos do mundo. O Afeganistão. O Iraque. E nós, homens modernos, suspirando pela última década do século 20, pós-Muro de Berlim. Essa festa interminável, em que a história, como dizia Fukuyama, chegara finalmente ao seu termo.

Estava tudo a correr bem, repito. Nos balanços noticiosos de 2009, que se preparam com semanas de avanço, os especialistas respiravam de alívio. Depressão económica depois da falência financeira de 2008? Não houve. Os estados agiram na altura certa, evitando o desastre incerto. E a economia americana já dá sinais de aquecimento, fazendo de 2010 o ano da ressurreição.

Além disso, o terrorismo era uma memória distante. Tirando o Afeganistão e o Iraque (e o Paquistão), os anos do terrível George W. Bush conseguiram o milagre da normalidade em solo americano. Nenhum ataque, nenhuma bomba. Não admira que Francis Fukuyama, sempre ele, tenha publicado novo ensaio na recente edição natalícia da "Newsweek" para anunciar - ufanamente, novamente, estupidamente --que a história terminara mesmo.

Bastaram poucos dias para perceber que a história não terminara. Em pleno Natal, Umar Farouk Abdulmutallab entrava em avião na Holanda. Destino: Detroit, Estados Unidos. E, nas cuecas, uma bomba para explodir durante o voo.

A tentativa foi frustrada por uma mistura de inabilidade do terrorista e coragem da tripulação. Mas ficava o aviso: os americanos ignoraram os apelos do próprio pai de Umar, que na Nigéria falara com as autoridades da embaixada. O filho andava com más companhias, disse o pai; Umar tivera treino jihadista no Yemen e preparava-se para o pior. No meio da festa, ninguém ligou. Para não perturbar a festa. Fim de caso?

Longe disso. Na Dinamarca, notícias trepidantes: um intruso com ligações à Al-Qaeda entrava em casa do cartoonista Kurt Westergaard, que em 2006 enfureceu a "rua árabe" com seus desenhos de Maomé. Kurt Westergaard escapou com vida ao ataque; mas o episódio mostra bem que pende ainda sobre a liberdade de expressão, uma das mais preciosas conquistas do Ocidente, a deliciosa "fatwa" dos fanáticos.

Caminhamos para o fim de uma década, é verdade. Mas o mais assustador é que terminamos a dita exatamente como começámos: com a certeza de que o terrorismo islamita não concorda com as teses do sr. Fukuyama. A história continua.

João Pereira Coutinho é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

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