Pensata

João Pereira Coutinho

18/01/2010

Diário da Europa

1º de janeiro - O mundo entra em 2010 mas a Europa promete regressar à Idade Média. Nada contra. A Idade Média teve as suas vantagens (lembrar Dante). Pena que a nova Idade Média seja um espaço perigoso e hostil para um novo Dante: na sua "Divina Comédia", o florentino tem a desfaçatez de condenar o profeta Maomé a um dos círculos do Inferno. Se o fizesse hoje, a lei contra a blasfêmia, aprovada na Irlanda com multas de 25 mil euros para quem "blasfema", não daria sossego ao poeta.

Nem a ele, nem a centenas de escritores ou artistas como ele, que terão de refrear os seus impulsos criativos para não ofenderem as crenças de terceiros.

Claro que, em termos rigorosos, é impossível saber, com avisada antecedência, quais são as crenças de terceiros: cada homem é um mundo e cada mundo tem a sua colecção privada de dogmas, tabus e princípios "sagrados". Como evitar a "blasfêmia" perante a infinita diversidade da espécie humana?

Só pelo silêncio: pela instituição de um mundo de silêncio, queimando as obras passadas e censurando as obras presentes. Bom trabalho.

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2 de janeiro - Almoço em Lisboa com colega de ofício. Ele, optimista, comunica-me que a primeira resolução do ano é deixar de fumar. Um clássico. Deixar de fumar, ou começar a dieta, ou fazer exercício - quantas vezes eu ouvi isto? Em finais de janeiro, quando a rotina se instala, já ninguém se lembra dos heroísmos com que iniciou o mês.

Um incentivo estatal, porém, torna a resolução mais premente: o governo português tenciona ajudar financeiramente os fumadores relapsos, pagando medicamentos ou consultas especializadas em "cessação tabágica".

Escuto sem rir. Não comento. Há muito que os estados da Europa chamaram a si nobre tarefa de infantilizar os europeus, dizendo o que eles devem fazer ou não fazer, usar ou não usar, comer ou não comer. Mas tratar um fumante como um doente representa um novo patamar na longa caminhada rumo à desumanização da espécie.

A espécie não reclama. Um cigarro é uma doença, não um vício exercido em liberdade e com liberdade. Chegará o dia em que a ingestão de sal, açúcar, gordura, certos tipos de carne, álcool e outros cardápios terá alas hospitalares inteiras, destinadas a "tratar" comemores e bebedores infectos.

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3 de janeiro - Escrevo texto para a "Ilustrada" sobre o último Philip Roth, "The Humbling". Nota máxima. Máxima e solitária: grande parte da crítica decidiu "cansar-se" do homem. Ainda não entendi porquê: será que a literatura é uma questão de peso e as novelas de Roth não cumprem os quilos mínimos?

Lamento. Cumprem os meus: as novelas finais são um dos grandes retratos sobre a velhice na literatura contemporânea, comparável aos retratos deixados por Tolstoi. De livro para livro, temos uma cartografia rigorosa, dolorosa, assombrosa, de um velho com a sua condição.

É o caso de Simon Axler, personagem do livro, um ator sexagenário com carreira emérita que perde o talento, ganha um alento (com romance inesperado) e percebe, quando o idílio termina, como é fatal respirar com o oxigênio alheio.

Axler é uma revisitação literal de Konstantin, personagem de Chékhov em "A gaivota", um outro náufrago que procurava sucessivas tábuas de salvação. E então recordo a melhor montagem da peça de Chékhov que vi em teatro. Aconteceu há dois anos, em Nova York, pela mão heteredoxa de Christopher Hampton. Metade da sala talvez tenha marchado para o Walter Kerr Theatre por causa de Kristin Scott Thomas, uma estrela desde "O paciente inglês". A sra. Scott Thomas não desiludiu (pelo contrário) e conseguiu dar a Arkadina a mistura fatal de vaidade e fraqueza que, opinião pessoal, é o motor da acção e da tragédia.

Mas as surpresas definitivas foram Peter Sarsgaard e, sobretudo, Mackenzie Crook como Konstantin, uma espécie de Hamlet russo que morre por amor não correspondido. Melhor: por amores não correspondidos, no plural - o amor de Nina e o amor da mãe, Arkadina, mais interessada no escritor Trigorin, tal como Gertrude parecia mais interessada por Claudius, para desespero do jovem príncipe.

Mackenzie Crook, que conhecia da televisão inglesa ("The Office"), tem o rosto e o corpo talhados para os russos: magro, macilento, de uma fragilidade doentia. A peça pertenceu-lhe. Como pertenceu a Peter Sarsgaard, apagado grande parte do tempo, mas que confere ao monólogo perante a jovem Nina uma intensidade de lágrimas. Dele e nossas. Sobretudo nossas. Acontece quando Trigorin se permite a um momento de honestidade sobre o seu ofício de escritor e relata, com perfeição dolorosa, as curvas e contracurvas desta ingrata arte.

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4 de janeiro - Albert Camus morreu há cinquenta anos. O que diria o escritor existencialista do estado da França actual? Mistério. Nicolas Sarkozy, por exemplo, pretende introduzir uma lei que criminaliza a "violência psicológica" entre casais, uma categoria que significa tudo e o seu contrário: da ameaça homicida às velhas discussões entre amantes, que normalmente antecedem a reconciliação apaixonada.

O problema da lei, aliás, começa precisamente aqui: na impossibilidade de colocar um funcionário da República dentro da casa, e do quarto, e até dos lençóis de cada francês, como fazer a rigorosa triagem dos gritos? Como distinguir, no fundo, a dor e o prazer?

Um aparelho de medição decibélica, obrigatório em todas as casas e com ligação imediata à delegacia do bairro, está longe de resolver o dilema. E não seria de espantar que, movidos por acção vigilante, os policiais arrombassem portas e janelas simplesmente porque escutaram o tipo de grito errado.

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6 de janeiro - Assisto a "Sherlock Holmes", o último filme de Guy Ritchie. O diretor sempre teve mão pesada e gongórica. Resultados insuficientes: um sub-Tarantino, como se vê em "Porcos e diamantes", que é uma mera caricatura do Tarantino original. Prefiro o original.

Corrijo: eu prefiro sempre os originais. Falo de Tarantino e, já agora, falo do Sherlock Holmes lendário, criado por Arthur Conan Doyle há mais de cem anos. Li as histórias na idade certa; e, depois, com uma gratidão infinita, vi a materialização do herói na composição magistral de Jeremy Brett, que legou o Sherlock Holmes definitivo (e inultrapassável) em dezenas de episódios filmados pela televisão britânica nas décadas de 80 e 90. Quem viu, não esquece: Brett não representa Sherlock Holmes; Brett é Sherlock Holmes. De tal forma que, dizem as más línguas, enlouqueceu com o papel. Acontece aos melhores.

O "Sherlock Holmes" de Ritchie diverte e Robert Downey Jr. é estimável como ator. Mas o seu Sherlock, de autêntico, só conserva o nome, embora fosse mais apropriado chamar-lhe "Indiana Holmes": ele corre, ele salta, ele luta. Não tem chicote, mas quase. No meio do frenesim, perdeu-se o essencial: um detective que era puro intelecto, um mestre da dedução lógica que desvendava crimes com a mesma elegância imóvel com que fumava o seu cachimbo.

Sem falar de um pormenor que escapa a Ritchie: o Sherlock de Conan Doyle é, no sentido preciso do termo, o primeiro existencialista moderno, consumido pela angústia do "spleen" urbano: uma angústia que ele tenta aliviar com as substâncias possíveis e a resolução de casos impossíveis. No fundo, duas formas de vício que cumprem o mesmo propósito: impedir que uma mente monstruosamente brilhante se devore a si própria. Conheço casos.

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8 de janeiro - Mencken dizia que o casamento é uma bela instituição. Para acrescentar: "Mas quem deseja viver numa instituição?" Mencken não conheceu a comunidade gay portuguesa, que nos últimos meses escreveu os mais belos poemas ao matrimónio em toda a história da literatura ocidental. Não consegui ler tudo, confesso: a minha diabetes não permite certos abusos. Mas li o suficiente para procurar um rasgo de racionalidade na exigência do "casamento gay", que o Parlamento português aprovou hoje entre lágrimas e suspiros.

Nunca a encontrei. Uma coisa é garantir formas de "união civil", como em Inglaterra, capazes de proteger direitos vários para quem deseja viver em comum. Sejam homens, ou mulheres, ou homens e mulheres. Outra, bem diferente, é desmantelar a singularidade tradicional de uma instituição, dotada de natureza e reconhecimento próprios, para acomodar os desejos "simbólicos" de uma minoria.

Aliás, não apenas de uma minoria, mas de qualquer minoria: se o casamento é tudo aquilo que quisermos fazer dele, não há nenhum motivo para recusar a benesse a comunidades imigrantes ou meras seitas religiosas que olham para a poligamia, ou para a poliandria, como formas legítimas de conjugalidade. Quem disse que os "afetos" são samba de duas notas só? Ou tudo, ou nada.

Verdade que a nova lei necessita ainda da aprovação presidencial, ou seja, do presumível parecer do Tribunal Constitucional, que se debruçará sobre um pormenor: a adopção. Tudo porque a nova lei, martelada às pressas e sem método, permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas não autoriza a adopção, uma originalidade lusitana no contexto dos (poucos) países que aprovaram o casamento gay. A exclusão da adopção, opinião minha, viola grosseiramente os direitos dos esponsais - mas esperemos pela sabedoria do Constitucional. Se isso se confirmar, o diploma regressa ao Parlamento. E, com ele, regressa um dilema que o primeiro-ministro José Sócrates se recusou, e se recusa ainda, a enfrentar: enterrar a lei, o que precipitará alguns suicídios; ou incluir a adopção no pacote, o que precipitará outros. Diversão garantida.

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9 de janeiro - Os jornais da Europa salivam com o "escândalo" de Iris Murdoch, a mulher do primeiro-ministro da Irlanda da Norte. Iris, de 60 anos, teve um caso extra-conjugal com um rapaz de 20. Se a história fosse a inversa - homem de 60, moça de 20 - não haveria escândalo. Talvez inveja. Seguramente, aplausos. Mas mulheres mais velhas com rapazes mais novos representam uma curiosa ameaça ao neandertal que existe na cabeça masculina.
Fato: no meio da história, houve dinheiro. Consta que a sra. Robinson usou a sua influência política para conseguir 50 mil libras para que o amante abrisse um negócio; consta igualmente que lhe exigiu parte do dinheiro, durante o caso, e a devolução da totalidade, quando o caso acabou.

Mas não são esses pormenores que entusiasmam as massas. Muito menos a demissão (temporária) do marido e a crise política séria que ela abriu no país. O que interessa é denunciar a "lascívia" da senhora e a evidente "hipocrisia" dela como defensora de valores "conservadores" e "cristãos".

Não comento. O fanatismo dos "tolerantes" não se comenta. Digo apenas que, na Europa política e burocrática de hoje, o caso de Iris Robinson lembra como os seres humanos realmente são: falíveis, frágeis, imperfeitos. Já tinha saudades.

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11 de janeiro - Morre Eric Rohmer. Digo o que disse quando Ingmar Bergman partiu deste mundo - e quando Woody Allen partir um dia. Foi-se um membro da família.

Rohmer será insubstituível: nenhum diretor tinha com as palavras, e com a literatura, e sobretudo com a filosofia, uma relação tão poderosamente vital, natural e até idealista. Digo "idealista" no sentido próprio do termo: a realidade dos seus personagens existia enquanto pensamento desses personagens - um fluxo permanente de conversas e meditações que, não raras vezes, estabelecia dissonâncias inevitáveis e ambíguas com a realidade "lá fora".

Filmes? Para começar, todos os contos "morais". E, dentro destes, o "Conto de Verão". Não sei quantas vezes acompanhei o adolescente Gaspard no seu verão pela Bretanha. Quantas vezes partilhei com ele a indecisão em perseguir o prazer efémero (com Solene), a cegueira romântica (com Lena) ou aceitar o afeto que (nunca) se encerra (da doce Margot). E quantas vezes o imitei, resolvendo dilemas sem verdadeiramente os resolver; fugindo, mentindo; mentindo-me.

Mas também sei que envelheci entretanto. E acredito que, algures no universo paralelo onde habitam todos esses personagens, Gaspard acabou por regressar ao cais daquele verão para procurar Margot. Eu, pelo menos, sei hoje que regressaria sem hesitar.

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16 de janeiro - Terramoto no Haiti. Lamento as vítimas. E lamento os abalos seguintes: falo dos terramotos verbais, a transbordar de sentimentalismo ordinário, que os profissionais do "humanismo" gostam de despejar sobre os cadáveres. Uma espécie de medição fálica para adultos em que o objectivo dos participantes é exibir em público, com requintes de pornografia, o tamanho da sua compaixão.

Já vi poemas por aí, a circular na internet. Já vi meditações pseudoteológicas nos jornais da Europa, com as inevitáveis acusações à "maldade" ou à "indiferença" de Deus perante o destino dos homens. Não existe analfabeto com pretensões intelectuais que não se considere o novo Voltaire do seu bairro. Vaidade, tudo é vaidade. Macabra vaidade.

E ignorante vaidade: o terramoto haitiano foi apenas a última gota numa longa sucessão de terramotos humanos que, nas últimas três décadas, condenaram o país à opressão política, à corrupção e à miséria. O caldo perfeito para que um sopro da Natureza gerasse a tragédia perfeita.

Numa altura em que o mundo corre para "salvar" o Haiti e as televisões se lambuzam com imagens da desgraça, seria importante lembrar que nem todo o dinheiro do mundo pode salvar os haitianos dos seus carrascos internos.

João Pereira Coutinho é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

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