Pensata

Luiz Caversan

29/05/2010

Cozinhar para viver

Minha mãe errava no sal. Dificilmente acertava o ponto do condimento cuja função básica é realçar o sabor dos alimentos. Portanto, cozinhava mal, a coitada, mas isso acontecia não porque ela fosse displicente com o bem estar da família, mas sim porque, além de ser a típica dona de casa de jornada dupla, detestava cozinhar.

Fui criado em um ambiente feminino, com duas irmãs, tia, primas, amigas da tia, das irmãs e das primas que tornaram a infância e boa parte da adolescência repletas de símbolos do universo da mulher. A comida, desse modo, deveria ser uma delas.

Talvez por conta da relativa restrição financeira, que impedia que se fosse muito além do trivial simples, meu repertório culinário sempre foi, nos primeiros anos de vida, muito restrito. Comia-se basicamente para se alimentar, não pelo prazer que uma refeição pudesse proporcionar. Isso apesar a influência italiana de um lado da família e portuguêsa do outro...

Daí a surpresa quando, de repente e não mais que de repente, ali pelos 20 anos, descobri a alegria e a satisfação de cometer um prato de comida que exigisse uma elaboração mínima. Uma descoberta que felizmente me acompanha até hoje.

O primeiro prato, um cozido português, foi perpetrado quando saí da casa dos pais, na então muito longínqua zona leste de São Paulo sem metrô, para morar em Pinheiros, mais perto do local onde minha vida jornalística se iniciava. Convidei a família toda para o apartamento que dividia com o também recentemente evadido de casa João Manuel, amigo-irmão de origem lusitana e que me passou a receita. Que foi realizada com um êxito surpreendente, inclusive para mim. Todos se fartaram com a variedade de carnes e legumes cozidos com temperos muito perfumados. Impossível esquecer como ficou bom o pirão, completamente no ponto.

Pois é isso: quem se lembra do ponto de um pirão elaborado 30 anos atrás tem mesmo uma relação muito boa com a comida...

E acho que a coisa é mais ou menos assim mesmo: quem tem a ver com as lides do forno e fogão, tem; quem não tem, não tem.

Para quem gosta desse tema, tão antigo quanto o homem e tão em voga hoje em dia, recomendo fortemente o filme "Jules e Julia", da diretora Nora Hebron, com Meryl Streep e Amy Adams. Encantador o desfile de pratos e sensações que além de tudo estabelecem incríveis ligações entre duas gerações, dois mundos distintos, e cujo grande ponto de contato é justamente, mais que o paladar, a capacidade de realizar alguma coisa que vai agradar muito este sentido, desta maneira satisfazendo-se a si próprio.

Em mais de uma ocasião, a personagem de Amy, Julie, deixa claro a importância para ela da personagem de Meryl, Julia, uma mulher fútil que se torna uma grande cozinheira e que, compartilhando seus talentos, praticamente ensinou os EUA a cozinhar, pelo menos a cozinhar à francesa.

"Julia mudou a minha vida", diz Julie, que sofria enfurnada num subúrbio de Nova York e renasce graças ao fantástico universo da gastronomia que descobre na vida e nos livros de Julia.

Certamente o encanto do filme vem muito de uma identificação com esse "renascer" na cozinha, porque trata-se de espécie de terapia ocupacional que já me tirou do buraco algumas vezes.

A mais marcante ocorreu coisa de uma década atrás, quando uma surto de depressão fortíssimo me prendeu dias dentro de casa e a única conexão que conseguia estabelecer com a vida (e o mundo) era por meio da comida que acabava preparando na base do esforço, mas que me manteve minimamente lúcido. Só e triste, devorava livros de receitas, ia para a cozinha, preparava diversos pratos e... os devorava, já então um pouquinho menos triste.

Outro dia isso voltou a acontecer, mas em circunstâncias diversas. Tinha uma decisão profissional muito séria e difícil para tomar, o que me causou uma quase incontrolável ansiedade. Que poderia, é claro, ser resolvida na base do Rivotril. Mas o remédio que escolhi foi muito mais prazeroso: fui para a cozinha e passei a tarde preparando pratos. Assim, foi surgindo desde uma salada de bacalhau com batatas e alcaparras em creme de feijão branco no lugar da maionese, até um molho de tomate italiano doce bem encorpado, daqueles para guardar e ir usando aos poucos. Além de um delicioso ragu de cordeiro, que ficou cozinhando horas, um feijão bem temperado, acrescido de fatias de paio português, batatas ao forno com azeite virgem e alecrim, pinhões para um purê que ainda vai ser preparado e, de quebra, uma omelete de aspargos brancos.

Nada demais, e nada que combinasse muito entre si, mas a geladeira ficou bem animada. E o cozinhar, outra vez, serviu para, muito além de manter-se, sentir-se vivo...

Fazer um alimento virar comida é uma excepcional maneira de exercer controle sobre alguma coisa, o que significa dizer exercer controle sobre a própria existência.

Além, é claro, de ser muito gostoso.

Luiz Caversan é jornalista, produtor cultural e consultor na área de comunicação corporativa. Foi repórter especial, diretor da sucursal do Rio da Folha, editor dos cadernos Cotidiano, Ilustrada e Dinheiro, entre outros. Escreve aos sábados para a Folha Online.

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