Pensata

Luiz Caversan

01/12/2007

Mas não se queima lixo?

É um prédio de esquina, rua São Vicente de Paula com praça Marechal Deodoro, em frente ao famigerado Minhocão, aquele viaduto grotesco que corta ao meio esta área de São Paulo, que se degradou desde que o monstrengo foi erguido há mais de três décadas .

É um prédio ironicamente cor-de-rosa, estilo anos 40, com uma pequena marquise. Pequena mas suficiente para que moradores de rua ali tentem se abrigar à noite, ignorando o grande "dormitório" em que se converte aquele trecho do Minhocão sobre a praça Marechal, que já foi linda e chique.

Fica a uns 150 metros do prédio em que moro; dando a volta, meio quarteirão. Por isso convivo, e aqui já escrevi mais de uma vez a respeito, com a proximidade de inúmeros moradores de rua que zanzam pela região, quando não estão dormindo ou se abrigando da chuva e do frio sob o Minhocão.

Hoje fui andando até lá. Não sabia direito onde ficava. Falei com o camelô que vende panos de prato: "Foi ali, naquele canto", me disse ele, apontando o outro lado da rua. Chequei com as duas moças de macacão laranja, que faziam a varrição da rua: "Foi ali mesmo, moço. O senhor viu, que maldade? Como alguém pode fazer uma coisa dessas?"

A "coisa": matar um morador de rua que dormia enrolado em seus andrajos, ateando fogo ao seu corpo com ajuda de algum combustível.

Foi o que aconteceu aqui do lado; se eu estivesse em casa e acordado na madrugada de terça-feira quem sabe teria até sentido o cheiro de queimado; lixo queimado.

Fui olhar de perto onde o homem foi atacado covardemente. Apenas uma mancha escurecida na calçada e uma espécie de resina grossa, algum tipo de resto de tecido sintético queimado, escorrido. Nada mais. Para quem não era nada, para quem não existia "em sociedade", para quem um ou outro colega de infortúnio conhecia apenas como Cangaíba, um destino previsível: do nada ao nada.

Os moradores de rua, estes daqui e os de qualquer outro canto desta cidade, os quais podem ser encontrados aos montes, crianças, velhos, mulheres, homens, incomodam-me muito. Sempre chamam minha atenção, sempre causam um baita mal estar.

Não porque sejam doentes, feios, sujos, malcheirosos. Não porque me abordem pedindo dinheiro ou comida. Não porque queiram "limpar" o vidro do meu carro toda vez que paro no farol da esquina, não porque sujem as calçadas e briguem e gritem e andem até pelados de vez em quando, no auge de suas loucuras.

Esses sub-cidadãos, essa sub-gente que expõe em via pública sua derrota e seu fracasso, esse sub-gênero incomoda porque representa nosso próprio fracasso, nosso lado mais cruel que é o daquele que exclui e deixa para trás o semelhante que é incapaz de ser "de bem", de ter uma casa, um emprego, uma família.

Esses seres, assim como o Cangaíba, que ao que tudo indica até agora foi morto por outro morador de rua com quem disputava um mísero espaço de calçada, são os sem-nada, por isso os enjeitamos, por isso fazemos de conta que não existem, por isso nos incomodam, esteticamente para a maioria, moral e conceitualmente para mim, também fracassado ao não saber o que fazer com eles.

Remover para asilos? Trazer para casa? Dar-lhes comida e atenção?

São tantos, tão difíceis de lidar, o que fazer? O que fazer agora que eles já praticamente nem humanos são mais, arrastam-se pelas calçadas com suas porcarias e são queimados como...lixo?

Pode parecer exagero, mas o sentimento que emergiu quando vi a calçada calcinada aqui perto de casa foi como se eu mesmo tivesse riscado aquele fósforo. Sim, exagero. Mas com certeza deixei de fazer alguma coisa para que o ex-cidadão Ivanildo Raimundo, 45 anos, o Cangaíba, fosse queimado como um insignificante monte de lixo.

Luiz Caversan é jornalista, produtor cultural e consultor na área de comunicação corporativa. Foi repórter especial, diretor da sucursal do Rio da Folha, editor dos cadernos Cotidiano, Ilustrada e Dinheiro, entre outros. Escreve aos sábados para a Folha Online.

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