Pensata

Luiz Caversan

01/03/2008

Para o motoboy morto

Naquele tempo havia ponto final de ônibus na praça Clóvis Bevilacqua --achava o máximo esse Bevilacqua com "cq", chique, coisa "da cidade".

Alguns dos ônibus modelo Mercedes Super B, motor traseiro, que partiam dos confins da zona leste, passando pela Penha, transcorrendo a interminável Celso Garcia, atravessando o rio Tamanduateí e subindo a Rangel Pestana, paravam finalmente ali, junto ao Corpo de Bombeiros, em meio a formigueiro de gente do Centro Velho.

Sim, naquela época São Paulo se dividia entre Centro Velho e Centro Novo, com o Vale do Anhangabaú no meio.

O trabalho de office-boy me levava freqüentemente à Secretaria da Fazenda, naquele prédio imenso até hoje plantado no finalzinho da Rangel Pestana.

Uma infinidade de guichês recebia os boys com seus documentos, cuja finalidade eu sabia muito bem na época, mas que hoje se perdeu nos cantos da memória.

Depois, bastava atravessar a rua, ziguezagueando entre os veículos que então trafegavam civilizadamente, para comprar material para o escritório em que trabalhava na Vila Esperança (Contabilidade Três Corações). Eram canetas, clipes, grampos, livros-caixa, entrada e saída de mercadoria, livro-ponto, carbono, borrador, tudo encomendado na mesma loja, a da esquina da Praça Clóvis, onde eu conseguia, por ser freguês, um bom desconto "fora da nota". Ou seja, a nota era no valor real da compra e o desconto --em geral uma merreca, mas muito bem-vinda-- ia para o bolso.

Além da Secretaria da Fazenda, havia trabalho na Prefeitura, e aí era o caso de atravessar a Praça Clóvis, cruzar a Sé, pegar a rua direita, desembocar na Praça do Patriarca, descer a galeria Prestes Maia e pegar uma daquelas lotações pretas (carros americanos antigos adaptados) que levavam, via uma avenida 23 de Maio ainda incipiente, até as repartições municipais que ficavam no para mim longínquo Parque do Ibirapuera.

Uma canseira.

Outras vezes, o destino era a Delegacia Regional do Trabalho (demissões, contratações, registros em carteira...), na Conselheiro Ramalho, coração do Bexiga.

Raramente havia alguma coisa para fazer lá para os lados do Centro Novo --adorava ver o Mappin, Teatro Municipal, Praça da República, Largo do Arouche; isso, sim, era chique no último.

Mas, mesmo que o trabalho fosse apenas na Sé, e sobrando ou não um troco na loja de material de escritório, o destino certo era mesmo o Centro Novo, especificamente rua Barão de Itapetininga, mais especificamente Galeria Nova Barão.

Longe para ir a pé, mas valia a pena.

Era ali que ficava, no piso superior, o prazer dos prazeres: as sensacionais barras de doce-de-leite com chocolate da Doceira Muzambinho.

Inesquecíveis.

Comia quantas desse para comprar e voltava feliz pelo Viaduto do Chá.

As barrinhas de chocolate ficaram aqui no gostinho da boca assim como os refrescos e sanduíches de lingüiça "de Bragança" da finada Casa Califórnia ou o cachorro quente crocante da salsicharia do largo do Café, esta em funcionamento até hoje, ao contrário da Praça Clóvis, que não existe mais, assim como a tal papelaria, que o tempo levou nem sei bem quando.

Naqueles finais de anos 60, ser office-boy era o máximo, pelo menos para quem vinha da periferia e tinha 15, 16 anos.

Era melhor do que ser contínuo de banco, porque esses ganhavam um pouco mais, mas precisavam usar gravata preta e o cabelo aparado.

Se bem que, ao contrário de muitos, eu era office-boy bem apanhado, roupas arrumadinhas, unhas limpas, educado e prestativo. Isso rendia, freqüentemente, elogios e, menos freqüentemente, gorjetas.

Naquela São Paulo que "não podia parar" os office-boys cruzavam o centro da cidade como abelhas faineiras, apressados e febris, numa correria sã que fazia a cidade funcionar em sua burocracia, mas numa certa harmonia com o trânsito, já intenso, mas muito, muito distante do caos presente.

Os boys eram satisfatoriamente necessários, e a pertinência do seu trabalho, do meu trabalho, ainda permitia que se estudasse e também se aproveitasse as longas viagens de ônibus até a zona leste para devorar muitos livros --hábito que graças a Deus se arraigou e persiste até hoje.

Era, sim, uma vida feliz, que ainda permitia finais de tarde no cine Marrocos ou um sorvete "sundae" nas Lojas Americanas, com seu cheirinho de coisas gostosas.

Era uma vida boa, de verdade, daquelas que valem a pena serem lembradas, assim como a lembrei outro dia enquanto o trânsito se arrastava na avenida entupida por causa do corpo do rapaz estendido no chão quente e sujo.

Era um colega meu, apesar dos 40 anos de lapso de tempo. Não era um "office", mas um "moto" boy, desses que entopem as ruas de São Paulo, costurando o trânsito, levando e trazendo uma burocracia inesgotável que exige deles cada vez mais e mais insanidade, a ponto de levar para o beleléu pelo menos dois infelizes por dia...

Fiquei ali um pouco, olhando o corpo do rapaz, pensando que no meu tempo, quando um office-boy era atropelado, isso se constituía em tragédia, notícia de jornal.

Ao passo que o rapaz ali caído no chão, meu colega, só não está totalmente esquecido porque sobrevive um pouquinho aqui, agora, na minha triste lembrança.

Luiz Caversan é jornalista, produtor cultural e consultor na área de comunicação corporativa. Foi repórter especial, diretor da sucursal do Rio da Folha, editor dos cadernos Cotidiano, Ilustrada e Dinheiro, entre outros. Escreve aos sábados para a Folha Online.

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