Pensata

Luiz Caversan

19/03/2005

Da necessidade de virar ostra

Dia desses senti vontade de virar ostra.

Fechar-me ao todo que cerca, confunde, oprime, sufoca e impulsiona desenfreadamente para o lado errado.

Quantas vezes vamos para o lado completamente torto e nada há a nos amparar?

Daí a vontade de ser ostra.

Para nada ver, nada sentir, expulsar, filtrar o que agride e cutuca e lanha a pele fina e inútil da sensibilidade exacerbada, aquela vítima da falta do aprendizado necessário de embrutecer-se.

Quando se sente demais, dói-se.

Não à ostra, fechadinha, cheia de vida, como que num útero primordial e defensor.

Ainda com a chance de transformar o que ousar penetra numa reluzente preciosidade.

Ostra, pensei, essa é opção para tudo o que não quero ouvir, ver, falar, cheirar, gozar, comer, beber, dormir, acordar e inexoravelmente digerir da realidade inevitável.

Ostra na pedra, nada mais: esta foi a utopia da semana.

No incontrolável expelir o mundo para o lado de fora de uma casca grossa e hostil, razoavelmente inexpugnável e protetora, senti ainda a necessidade, também em geral incontrolável neste cronista, de pesquisar o bicho, ou seja, a ostra.

E qual não foi a grata surpresa ao me deparar com um poema-em-prosa delicioso sobre o bicho, ou seja, a ostra.

Dizem tudo as palavras alinhavadas pelo poeta francês Francis Ponge (1899-19880, descoberto por acaso no belo site www.opoema.libnet.com.br.

Dizem tudo o que eu queria dizer e mais um pouco, metaforizam de forma adequada e sublime o sentimento que permeou meu coração por esses dias tumultuados. São apenas descritivas daquilo em que me quis transformar, nada mais.

Mas, como, de acordo com o pessoal do site, Ponge é mestre em dar voz às coisas silenciosas, fui invadido de felicidade ao poder usufruir a voz do silêncio para exprimir a angústia e a perplexidade diante da vida muitas vezes banal que nos surpreende e hostiliza, sempre aproveitando, é claro, quando baixamos a guarda diante das interpéries.

O nome do poema? Óbvio: "A Ostra":

"A ostra, do tamanho de um seixo mediano, tem uma aparência mais rugosa, uma cor menos uniforme, brilhantemente esbranquiçada. É um mundo recalcitrantemente fechado. Entretanto, pode-se abri-lo: é preciso então agarrá-la com um pano de prato, usar de uma faca pouco cortante, denteada, fazer várias tentativas. Os dedos curiosos ficam trinchados, as unhas se quebram: é um trabalho grosseiro. Os golpes que lhe são desferidos marcam de círculos brancos seu invólucro, como halos.
No interior encontra-se todo um mundo, de comer e de beber: sob um 'firmamento' (propriamente falando) de madrepérola, os céus de cima se encurvam sobre os céus de baixo, para formar nada mais que um charco, um sachê viscoso e verdejante, que flui e reflui para a vista e o olfato, com franjas de renda negra nas bordas.
Por vezes mui raro, uma fórmula peroliza em sua goela nácar, e alguém encontra logo com que se adornar".

Não, não virei molusco, tive de continuar a enfrentar as manhãs depressivas, os clientes instáveis, o amor impossível, a infelicidade passageira e adolescente da filha, os jornais, os livros...

Mas, aprende-se, sempre.

Tanto que no improvável romance policial "Gone, Baby, Gone", de Dennis Lehane, encontrei essa, bem boa: "Se você quer ser amado, pare de se lamentar...".

Excelente conselho, não?
Se não der certo?
Tente virar ostra...

Luiz Caversan é jornalista, produtor cultural e consultor na área de comunicação corporativa. Foi repórter especial, diretor da sucursal do Rio da Folha, editor dos cadernos Cotidiano, Ilustrada e Dinheiro, entre outros. Escreve aos sábados para a Folha Online.

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