Pensata

Luiz Caversan

05/04/2008

Quem tem medo de Wilson Simonal?

Era uma vez um garoto negro, pobre, filho de uma empregada doméstica, que gostava de muito de cantar.

O garoto cresceu, tornou-se um jovem artista em meio ao fervilhar cultural do Rio de Janeiro dos anos 1950.

Sua voz, seu suingue, seu charme logo o fizeram se destacar num meio e num momento, já na década seguinte, em que o talento, a versatilidade e o senso de oportunidade valiam ouro, sobretudo para sobreviver numa sociedade de raízes racistas tão arraigadas quando dissimuladas num convívio que poderia ser cruel ou tolerante, sem nunca deixar de ser hipócrita.

Bem, a mídia se massificava e se diversificava naqueles anos 1960 pós-Bossa Nova, de Jovem Guarda, Tropicalismo, sambalanços e modismos surgindo-pegando-sumindo de um dia para outro. Tudo que era novidade poderia tornar-se "prafrentex", e dançava-se e cantava-se porque era preciso alegria. Isso de um lado colorido do Brasil que aliás nunca perdeu a cor, porque havia o lado sem cor nenhuma que era o da ditadura militar que se instaurava e que ainda daria muito pano para as mangas.

E a partir de meados dos 60 o rapaz-já-homem se converte no mais popular cantor do Brasil depois do Rei Roberto, por conta de sua genialidade e de seu talento incontestável, cantando, dançando, atuando, está aqui e ali, da propaganda da Shell às modas da Fenit, da telinha da TV Record às boates da moda, impondo um comportamento descompromissado como compromisso de vida, cantando uma alegria que segundo ele era o mote para tudo. "Alegria, alegria", apregoava o garoto negro que saiu do seu lugar, aquele do preto comportado, humilde, sim senhor.

Tornou-se famoso, rico, mas também ostentador, irreverente, ficou arrogante, nem sempre levando para a vida do dia a dia a simpatia que transmitia em público. "Crioulo metido", sabe como é?

Chegou aos píncaros, cantou com Sarah Vaugh, lançou sucesso após sucesso, estava em todas, carrões, louras mil, aconteceu também no exterior, a virada da década 60/70 estava ali para lhe servir, identificando-o com a popularidade da Seleção Canarinho Tri Campeã - México 70.

Mas também vinculando-o ao ufanismo de um Brasil Grande que interessava à ditadura militar e deixava mais triste os que tinham muitos motivos para estar tristes.

E foi então que seu mundo caiu.

Da noite para o dia seu nome foi envolvido em um rumoroso caso de agressão a um contador que supostamente o havia roubado, tendo como protagonistas agentes dos órgãos de repressão ligados à ditadura. De mandante de agressão, logo passou a ser acusado de colaborador com o regime e, pior de tudo, de delator. Polícia, processos, malho na imprensa, tudo de ruim.

O astro turvou-se, o inconseqüente sucumbiu às conseqüências de declarações desastradas, tornou-se o pior entre seus pares e em poucos meses foi banido da mídia, do meio artístico, da vida cultural, da vida em si.

A partir daquele começo de anos 70 e nos 20 anos que se seguiram, ele permaneceu como um fantasma, um não-alguém, um pária, um exilado em seu próprio país, com uma sentença de condenação perpétua.

O artista, o cantor das multidões, o irreverente, alegre, aquele que teve coragem de cantar "sim sou negro de cor" no seu tributo a Martin Luter King (parceria com Ronaldo Bôscoli), aquele que regeu o Maracanã e encantou milhões, o rei da popularidade sumiu, ninguém sabe, ninguém viu.

Até morrer em 2000, passou anos e anos tentando provar sua inocência, recolhendo documentos e atestados de que não colaborou com regime algum, não delatava e não delatou ninguém, mesmo porque, naquele mundo de fantasia em que vivia, nem sequer saberia o que delatar, dizia ele e alguns de seus defensores.

Morreu doente, triste e abandonado, sua existência e importância artística negadas até o fim.
Todos foram anistiados, menos ele.

Esta história triste _que só não havia sido ainda totalmente esquecida por conta da atuação na cena cultural, ocupando lugar de merecido destaque, de seus filhos Wilson Simoninha e Max de Castro--, agora volta à tona.

A trajetória do cantor Wilson Simonal, do céu à lama, é reconstituída de forma excepcional no documentário "Ninguém Sabe o Duro que Dei", cartaz do festival "É Tudo Verdade" e que entra logo mais no circuito comercial.

O mais importante do filme é que está tudo ali, não apenas a polêmica que o levou à bancarrota profissional e pessoal, mas sobretudo todo o brilho de sua fulgurante carreira, com cenas memoráveis dos programas de TV, dos shows e dos comerciais da época. Além, como é mister nesse tipo de filme, de inúmeros depoimentos, como os do sempre pontual Nelson Motta, Chico Anysio, Arthur da Távola, Ziraldo e Jaguar --estes dois últimos protagonistas da violentíssima campanha que seu jornal, "O Pasquim", moveu contra Simonal à época, agora admitindo certos "exageros".

A polêmica está no filme (há ainda o depoimento do contador e de parentes do artista), mas dela, da polêmica, já se fala sempre e muito.

O que importa, aqui, sem esquecer acolá, é rever e re-ouvir Simonal num dueto fan-tás-ti-co com Sara Vaughan; é ele cantando com Elis Regina, é ele lançando o patropi, é ele regendo 30 mil pessoas no Maracanãzinho lotado, é ele batendo bola com Pelé...

Estas cenas ficaram anos no ostracismo, ainda bem que agora estão de volta e podem ser contempladas com isenção.

O país precisa desse tipo de resgate, doa a quem doer.

O documentário em questão permite, satisfatoriamente, que todos os lados sejam ouvidos.

Isto feito, que cada um tenha seu julgamento da história.

Luiz Caversan é jornalista, produtor cultural e consultor na área de comunicação corporativa. Foi repórter especial, diretor da sucursal do Rio da Folha, editor dos cadernos Cotidiano, Ilustrada e Dinheiro, entre outros. Escreve aos sábados para a Folha Online.

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