Paulo
Francis ligava, uma, duas da manhã, e começava a falar. Falava sem
parar por uma hora, com interjeições pontuais da minha parte, para
ele saber que eu continuava acordado, que ele não estava falando
sozinho. Isso foi 87, quando passei meio ano em Nova York para "aprender
com Paulo Francis". Era o que dizia o projeto do jornal, para novatos
como eu.
Antes esteve lá José Arbex. Depois, Renata Lo Prete, Fernando Rodrigues,
Zeca Camargo. Sempre achei que nós cinco éramos como discípulos
de Francis, o mestre iconoclasta. Que eu saiba, ele repetiu com
todos as mesmas situações. Ligava à noite, solitário que era, e
falava, falava. Também havia os almoços, os jantares nos restaurantes
caros que ele pagava, os passeios a pé até as livrarias, para introduzir
autores como Eric Bentley.
Foi por culpa dele, em parte, que me tornei crítico de teatro e,
depois, colunista de política na TV. Paulo Francis foi um dos maiores
críticos do país, pouco lembrado em São Paulo por provincianismo.
Quando deixou a crítica, ou melhor, quando o teatro o deixou, ele
renasceu como colunista de política na TV, como um crítico (e um
personagem) do grande teatro do mundo.
No seu relato a George Moura, em "O Soldado Fanfarrão", ed. Objetiva:
"Samuel Wainer me deu uma coluna de televisão e eu comecei a comentar
programas políticos. Usei métodos para criticar políticos como fazia
com os atores". Antes de crítico, foi ator, dizem que muito bom.
O nome Paulo Francis, "nome de bailarino de teatro de revista",
foi dado pelo produtor Paschoal Carlos Magno ao ator. O original
era Fraz Paulo Trannin Heilborn.
Jamais deixou de ser ator. Janio de Freitas disse que, ao mudar
para Nova York, Francis passou a viver "um personagem inventado
com o capricho e o talento do sempre apaixonado por teatro que,
à falta de uma peça para elaborar o grande personagem, criou-o na
sua vida mesma". Sempre viveu um papel, como ele mesmo dizia, por
exemplo, de suas atuações na Globo.
Dizia muito mais. Dizia que os amigos de verdade são aqueles que
a gente faz na juventude, como o dramaturgo Millôr Fernandes, de
quem encenou uma peça. Contava mil histórias, por exemplo, sobre
como Janio de Freitas foi o modelo para o personagem central de
"Terra em Transe". Aliás, foi Glauber Rocha quem definiu o personagem
Paulo Francis, ao afirmar que "alguma coisa nova aconteceu no jornalismo
brasileiro quando este ex-ator trocou o palco pela crítica".
Fui informado da morte de Francis, há três anos, por um amigo comum,
Régis Nestrovski, que foi correspondente de "O Globo" em Nova York.
Eu estava na cidade, vendo peças na Broadway, hospedado a um quarteirão
do Times Square. Saí vagando pelas ruas, sob o impacto da notícia,
com uma sensação obscena de liberdade, de que Nova York era minha,
não mais de Francis.
Com sua morte, embora se mantenham como protagonistas grandes românticos
como Janio e Millôr, terminou para a minha geração, creio eu, a
sombra do jornalismo dos anos 50/60 _fosse o jornalismo irresponsável
e brilhante do Rio, fosse o responsável e não menos brilhante jornalismo
de São Paulo, de Décio e colegas. Mas a sensação de liberdade e
poder não durou mais que algumas horas.
Eu e muitos tentamos seguir Francis, em toda parte. Mas nem é preciso
dizer que ele não deixou herdeiros, no brilho como na violência;
alguns ainda insistem, mas não vale a pena falar deles. E Francis,
na verdade, mal é lembrado, pouco foi no aniversário da morte, em
fevereiro. Não se escrevem teses, não se constróem sites sobre ele,
jamais foi publicado o terceiro volume dos romances "cabeça".
George Moura bem que buscou um editor para lançar uma seleção das
mais de mil críticas teatrais de Francis. Não achou interessados.
Quem quiser pode lê-las quase todas, encadernadas pelo esforço de
Moura, na Biblioteca Nacional, no Rio, e na biblioteca da Escola
de Comunicação e Artes da USP. Vai abaixo uma amostra, a pior possível,
mas também a mais lendária.
É o texto que fez Francis levar sopapos de um diretor e uma cusparada
de um ator. É também o texto que terminou por exilá-lo do teatro.
Os leitores entenderão por quê. A edição vai sem o nome da atriz,
trocado por "ela". Foi publicado em 17 de outubro de 58, no "Diário
Carioca", e tornou-se tabu no teatro brasileiro. Fala-se dele, mas
quase ninguém o conhece.
"Ela é uma mulher
de teatro a quem cumprimento na rua, pois já fomos apresentados.
No mais, nossas relações são de crítico para profissional do palco.
Apesar disso, ela se julgou no direito de propor dúvidas quanto
à minha integridade, primeiro, como jornalista, segundo, como homem.
Vamos por etapas. Ela foi à televisão e declarou que sofro do fígado,
que não gosto de teatro. Fui notificado, naturalmente. Não dei importância
ao fato, pois se fosse ligar a toda mostra de ressentimento de histriões
criticados aqui ficaria sem tempo pra mais nada. Comparemos, entretanto,
sua conduta com a minha. O máximo que fiz até hoje foi sugerir que
ela é uma atrizinha, como existem por aí às dúzias, um fantoche
manejado pelo diretor. Estou dentro dos meus direitos profissionais
de crítico. Não entrei no terreno pessoal. Poderia ter acrescentado
que seu prestígio se deve à publicidade que se faz em torno de sua
beleza, que atualmente vive às custas da galvanização de salões
de senhoras, pois o tempo passa e com ele qualquer mulher bonita.
Limitei-me, todavia, ao aspecto estritamente teatral do seu caso.
E ela? Se não gosto de teatro e faço crítica, sou logicamente desonesto
para com os leitores, os profissionais e os proprietários deste
jornal. Ela poderia ter dito que sou mau crítico, que nada entendo
do assunto etc., mas preferiu assacar contra a minha honestidade.
Quanto à história do fígado, o diretor ou qualquer outro, da infinidade
de intelectuais que lhe pespegaram um pouco de brilho, deveria informá-la
que os doentes de modo geral são mais receptivos ao entretenimento
de segunda categoria do que os sãos, pois necessitam, mais do que
os últimos, divertir-se. Assim, se não me satisfaço com seu histrionismo
primário, apesar da minha enfermidade, é porque ela é ruim mesmo.
Segundo ato: ela vai a um desses cavalheiros cuja profissão é escrever
notas bajulando celebridades ou descrever o que comeu no dia anterior,
como se sua alimentação fosse do interesse de todos _como se fosse
um bebê com elefantíase a quem todos se preocupam em alimentar bem,
ao menos para minorar-lhe a anomalia. Diz então que sou muito sexy.
Ora, esse termo, quando empregado para homens nos botequins de luxo
do Rio, é sinônimo de homossexual. Não sei onde ela colheu essa
informação a meu respeito.
Nunca dormimos juntos, que eu me lembre, para que ela possa manifestar-se
sobre a minha virilidade. É possível que a vedeta esteja me confundindo
com alguns de seus colegas de palco. Todos nós temos a tendência
de generalizar sobre pessoas e coisas, baseando-nos nas circunstâncias
que nos cercam ou em gente de nossa intimidade, pois ambos esses
elementos são reflexos de nossas personalidades.
Em todo caso, trata-se de um mexerico. E, mexerico por mexerico,
seu dossiê comporta muito mais do que o meu. O que sei sobre sua
vida privada caberia num livro do tamanho de 'As Mulheres Fatais'
ou qualquer outro romance barato com pretensões a respeitabilidade.
Nunca usei esse material aqui, pois não me agrada esse tipo de literatura.
Ela talvez se interesse em saber que já me ofereceram cópias das
fotos para que ela posou em trajes menores e posições provocantes.
Fotos que foram publicadas numa revista pornográfica americana,
'Nugget'. Recusei a oferta, pelo motivo já alegado.
E há muito mais: temos a história do imposto de transmissão que
ela teria pago para ingressar na Cia. Cinematográfica Vera Cruz.
Uma história possivelmente mal contada, mas que é do conhecimento
de qualquer aspirante a vaga-lume de teatro. E, quanto à maneira
como ascendeu ao estrelato no TBC, os fatos já são do domínio público.
E vamos parar por aqui.
Há também a possibilidade de que ela tenha empregado o termo sexy
no seu sentido exato. O Boswell da vedeta, em redigindo a nota em
questão, disse que não entendeu o que ela queria dizer. Os diretores
de seu jornal devem vigiar mais atentamente a sua coluna, pois nela
saem publicadas coisas que o colunista transcreve sem compreender
o sentido. Mas, voltando ao sexy, supondo que ela tenha usado a
palavra na sua significação correta, sinto-me quase tentado a propor-lhe
que venha experimentar o que prescreveu. Se não o faço, é por dois
motivos. Primeiro porque, com um pouco de boa vontade hindu, ela
poderia ser minha mamãe. E segundo porque, embora eu tenha sofrido
no meu pensamento e conduta uma certa influência comunizante, há
um limite para tudo."
Leia colunas anteriores
31/5/2000 -
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24/5/2000 -
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Eu, eu, eu
03/5/2000 - Sexo explícito