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  15 de fevereiro de 2001
  "Casus belli" ou rumo ao setentrião
 


Ainda não sei quando o Brasil declarará guerra ao Canadá, mas é certo que vai fazê-lo. E com toda a razão. Não podemos mesmo tolerar a ofensa daqueles habitantes de pedaço de calota polar que ousaram sugerir que nosso gado está contaminado pela doença da vaca louca. Decididamente, nós temos um "casus belli".

O nacionalismo é mesmo ridículo e seria apenas engraçado se, por vezes, não tivesse consequências menos risíveis.

Enquanto aguardamos o deslocamento de nossas gloriosas forças de terra, mar e ar rumo ao longínquo setentrião, convém saber por que estamos lutando.

O mal da vaca louca, tecnicamente conhecido como encefalopatia espongiforme bovina (EEB), é uma doença infecciosa fatal que ataca o sistema nervoso do gado e é transmissível para seres humanos, hipótese em que permanece fatal só que ganha o nome de nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJv). A velha DCJ ocorre espontaneamente, à proporção de um caso por milhão.

Encefalopatias espongiformes transmissíveis (EETs) acometem praticamente todos os mamíferos, podendo variar o tempo de incubação, sempre relativamente longo. Imagina-se que, no homem, leve de 5 até 30 anos para se manifestar. A comprovação do diagnóstico só é possível na necropsia e se caracteriza pelos "buracos" no encéfalo, com a formação de placas características (amilóides).

Em humanos, a sintomatologia varia um pouco. Pode começar com distúrbios de movimentos (ataxias) ou achados psiquiátricos, como depressão, e evolui para a total perda dos movimentos, às vezes com demência às vezes não. A morte sobrevém em 100% dos casos.

Um bom apanhado da situação pode ser encontrado no livro "Banquetes Mortais", do prêmio Pulitzer Richard Rhodes (Editora Campus). O texto, que é de 1997, um pouco defasado, portanto, ganha às vezes contornos sensacionalistas, mas, como existe a possibilidade de o autor estar certo, o "sensacionalismo" se torna um alerta.

Alerta meio inútil, aliás. Configurada a pior hipótese, muitos (principalmente europeus) morrerão de morte atroz nos próximos anos e não há nada que se possa fazer.

A história do mal da vaca louca junta pesquisa médica, técnicas de detetive, canibalismo no Pacífico Sul, economia, corrupção e até escândalos sexuais. Vale a pena ler o livro, que não chega a ser técnico.

Em linhas muito gerais, os canadenses podem ter razão. É possível que o Brasil já tenha o mal da vaca louca e nós ainda não saibamos. É bem mais provável, porém, que os próprios canadenses o tenham e nós não.

EETs são conhecidas desde 1750. O caso mais antigo é o scrapie, que acomete carneiros. Em tempos passados pelo menos, a moléstia aparentemente não havia ultrapassado a barreira das espécies e ficava restrita a gado ovino.

No final dos anos 50, médicos australianos descobriram o kuru. Uma encefalopatia que atacava nativos da Nova Guiné. Mais tarde, associou-se a patologia a hábitos canibais. O alvo preferencial do kuru eram mulheres e crianças, justamente a população que mais frequentemente comia a carne de parentes mortos.

Ao que tudo indica, a moléstia é provocada por prions, que são partículas protéicas infecciosas. Há aqui um desafio ao que conhecemos em biologia. Doenças infecciosas são causadas por vírus, bactérias, protozoários ou vermes. Incomoda o fato de uma proteína também poder fazê-lo, porque a proteína é bem menos que um ser vivo. Ela não possui ácido nucléico, ou seja, não teria, em princípio, condições de se reproduzir, nem mesmo parasitando uma outra célula.

Prions existem em todos os mamíferos. Concentram-se em células nervosas, mas estão por todo o corpo. Ninguém sabe direito para que servem, mas desconfia-se de que têm uma função, já que foram conservadas no curso da evolução.

Normalmente, prions não são patogênicos. Quando o são, há _acredita-se_ uma mutação que os torna fatais. A pergunta, então, é: como material em princípio incapaz de se duplicar pode provocar contágio?

Se prions são apenas proteínas e são mesmo os causadores da doença (vale lembrar que nada ainda foi "provado" no sentido forte), eles se duplicam. Resta saber como. O infectologista americano Carleton Gajdusek, laureado com o Nobel por suas pesquisas com o kuru, acredita que prions mutantes contaminem os normais por um processo de cristalização, o mesmo fenômeno que permite fazer chuva bombardeando nuvens com iodeto de prata. O cristal dá o "modelo" para as moléculas de água se agruparem como cristais de gelo que, derretidos, formarão as gotas de chuva.

Não se pode, porém, excluir a possibilidade de as EETs serem transmitidas por vírus que, por alguma razão, têm seu ácido nucléico escondido por uma capa protéica. É a hipótese dos vírus lentos. A dos prions, contudo, vem ganhando força nos últimos anos.

A doença teria atingido o gado bovino também por uma espécie de canibalismo. Na Europa e na América do Norte principalmente, o rebanho costuma receber complementação de dieta protéica feita com farinha de carne e ossos de animais, normalmente refugos de abatedouros, ou seja, reses doentes.

As técnicas de esterilização geralmente usadas, não funcionam contra prions. Elas atacam o ácido nucléico e prions não o teriam.

Acredita-se que carneiros com scrapie ou mesmo bois com formas espontâneas da doença tenham sido usados na farinha dada ao gado. A doença rapidamente se espalhou pelos rebanho britânico. Já chegou à Europa continental. Foram diagnosticados cerca de 80 casos humanos atribuídos à contaminação por carne. Como a incubação nas pessoas é bem mais lenta do que no gado, não se pode excluir a possibilidade de haver milhares de infectados que ainda não manifestaram sintomas.

Para piorar, não foi descartada a hipótese de transmissão por leite, queijo, transfusões de sangue. Material médico feito de tecidos animais, como fio de sutura e próteses, é outra incógnita.

O sistema imunológico humano ou animal não reage às EETs, porque não reconhece prions mutantes como invasores. Ele os confunde com os prions "saudáveis".

A pobre agricultura brasileira teria, sobre as do Primeiro Mundo, a vantagem de ser quase exclusivamente extensiva. O gado não costuma ser alimentado com farinha animal. Quando encontra capim, já é muito. É um daqueles raríssimos casos em que é vantajoso ser pobre.

Não sei se o cenário mais apocalíptico pintado por Rhodes vai ou não se realizar. Por via das dúvidas, precisamos acelerar nossos planos de desembarque no Canadá.



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