Pensata

Sérgio Malbergier

17/04/2008

Malditadura

Nasci em 1965, já sob a bota da ditadura. E, como todos os outros brasileiros vivos desde aquela época, sofremos até hoje com a estupidez, para dizer o mínimo, do regime militar. Então somos todos, como Ziraldo, Jaguar, Cony, qualificados para esse dinheirão que a Comissão de Anistia começa a desembolsar com mais desembaraço.

Por exemplo, posso argumentar que o regime militar arrebentou o cinema brasileiro, o que me prejudicou profissionalmente, já que deixei a faculdade de cinema em plena crise da Embrafilme. O cinema nacional não existia. Fui cair nos braços do jornalismo. Quero minha compensação.

Posso pedir compensação também por coisas menos tangíveis, mas não menos importantes.

Crescer no Brasil nos anos 1970 foi dureza, posso argumentar em busca do milhão. Se tivemos o tricampeonato com Pelé e Jairzinho, não tínhamos acesso a nada, nenhuma liberdade, nenhum debate, nenhuma contestação, censura, tortura, execuções, um deserto verde-oliva, ufanismo barato, cidades muito mais agradáveis e só.

Era muito difícil desenvolver o cérebro, nosso intelecto atrofiou, e pagamos por isso até hoje. Formei-me com um militar ignaro decidindo o que podia ler, ver e ouvir. Decidindo errado, claro. Os militares isolaram ainda mais nosso isolamento, nos tolheram a mente, nos limitaram. Quero minha compensação.

Pressionado por invejosos como eu a espera de nossa devida parte, Ziraldo esbravejou: "Eu quero que morra quem está criticando. Porque é tudo cagão e não botou o dedo na seringa. Enquanto eu estava xingando o Figueiredo e fazendo charge contra todo mundo, eles estavam servindo à ditadura. Então, qualquer crítica que se fizer em relação ao que está acontecendo conosco eu estou me lixando".

Engraçado. Como o "Pasquim" era engraçado, mas não sobreviveu à democracia. É fácil gozar a ditadura, chocar a caretice. Avançamos, e o "Pasquim" perdeu a mão. Como a esquerda, que parecia heróica apenas porque enfrentava o autoritarismo militar.

Eu mesmo fui para a esquerda, se alguém quer saber. Muito rapidamente, entre os 14 e os 18 anos. Mas quando entrei na universidade o movimento punk mostrava a cara feia em São Paulo. Varreu a militância esquerdista da Escola de Comunicações e Artes da USP por bons anos. A chapa chamada Picaretas venceu as eleições do centro acadêmico prometendo extingui-lo e revogar a lista de presença nas aulas. Vitória punk (uma contradição em termos), ambas as promessas foram cumpridas (por algum tempo, a anarquia tem pouco fôlego). Era um eco menor da abertura que viria logo, pressionada pelo óbvio.

Saímos obtusos da ditadura. Mas, como 99,9% dos brasileiros, não vou pedir reparação financeira pelo atraso pessoal e coletivo imposto por quase 20 anos.

Estaríamos apenas duplicando o prejuízo já dado ao Tesouro Nacional.

Sérgio Malbergier é jornalista. Foi editor dos cadernos Dinheiro (2004-2010) e Mundo (2000-2004), correspondente em Londres (1994) e enviado especial da Folha a países como Iraque, Israel e Venezuela, entre outros. Dirigiu dois curta-metragens, "A Árvore" (1986) e "Carô no Inferno" (1987). Escreve para a Folha Online às quintas.

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