Pensata

Sérgio Malbergier

20/08/2009

Direita para dentro, esquerda para fora

O lulismo, obviamente, é de direita. Sua aliança com (o que) Sarney (representa) prova isso mais do qualquer outra coisa, mesmo sua adesão ao capitalismo mercadista. Prova também que o Brasil só pode ser governado pela direita.

Mas há ainda um setor, importante, comandado hoje por um esquerdismo mofado e ineficaz: as relações exteriores. Esse ideologismo contamina uma área da gestão pública que, como todas as outras, deveria ser dirigida por resultados, não por ideologias.

Não que os resultados dessa gestão Celso Amorim à frente do Itamaraty sejam só ruins. O Brasil desde 2003 ganhou forte projeção internacional e nunca foi tão ouvido em questões comerciais e políticas. A atuação de Amorim na criação do G20 (grupo de países em desenvolvimento no âmbito da Rodada Doha) inaugurou novo status para a diplomacia brasileira.

A maior parte desse mérito, obviamente, é da estável economia do país, com sua liderança na produção de commodities agropecuárias e metálicas importantes e seu cada vez mais sólido mercado interno. Mas Amorim foi um grande articulador na reunião da Rodada Doha de Cancún de 2003. Parecia conduzir nossas relações internacionais num caminho mais ousado, inovador e aglutinador.

Cercado, porém, de dinossauros como Marco Aurélio Garcia, o assessor presidencial petista para assuntos internacionais, e Samuel Pinheiro Guimarães, o número 2 do Itamaraty, Amorim tomou um desnecessário, contraproducente desvio para a esquerda na inevitável emergência brasileira.

E o esquerdismo hoje, despido de suas velhas convicções novecentistas, manifesta-se num terceiro-mundismo redivivo e num resistente antiamericanismo. Assim, encaixamos nossa nova grandeza em apertadas fórmulas ultrapassadas, ao invés de inovarmos nosso discurso, nossa prática, de forma mais ambiciosa, como, aliás, fez Amorim em Cancún em 2003.

Assim, ao invés de promovermos uma diplomacia de resultados, comercialmente moderna e agressiva, gastamos nossos poucos diplomatas e embaixadas em ideologismos insensatos. As críticas se avolumam:

"O Brasil não faz publicidade de si mesmo, não se projeta tanto quanto deveria em termos comerciais. O Brasil é um protagonista internacional em política, com uma liderança ministerial forte, um serviço diplomático muito eficiente. Mas, em relação aos negócios, acho que muitos no Brasil veem o mercado interno como o limite das suas ambições", disse à Folha em março o poderoso ministro dos Negócios britânico, Peter Mandelson,

"O governo brasileiro continua totalmente míope em relação à China... O Itamaraty tem uma posição arrogante. A China já é a terceira maior economia do mundo, deve se tornar a segunda do mundo neste ano ou no máximo em 2010. Precisamos colocar nossa violinha no saco, pois nós precisamos mais deles do que os chineses de nós. O empresariado é prejudicado. Por que os Estados Unidos vendem carne de porco à China e o Brasil não consegue?... Olha, quando eu visito a embaixada chinesa em Brasília ou o consulado chinês em São Paulo ou no Rio, sou recebido por vários diplomatas chineses que falam português. Não temos ninguém no Itamaraty, ou no governo brasileiro, que fale chinês... O governo brasileiro promove mais visitas à África do que à Ásia. O ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, nunca foi à China. Nem Miguel Jorge, da Indústria e Comércio. Erramos feio. Achamos que o mundo está louco para investir no Brasil e ficamos sentados esperando", disse em maio à Folha o secretário-executivo do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), Rodrigo Tavares Maciel.

Álvaro Cyrino, que elabora na Fundação Dom Cabral ranking da internacionalização das empresas brasileiras, diz que a maioria das embaixadas brasileiras não reúne informações básicas para fornecer aos empresários que chegam num novo país, como dados de consultores, prestadores de serviços e bons advogados, e que também não há qualquer política de atendimento a esse empresário ou mesmo funcionários qualificados para esse trabalho na maioria dos países. "A cultura expansionista, que é muito agressiva em países como Irlanda e Espanha, tem de ser completamente modificada no Brasil", disse Cyrino em agosto.

O Itamaraty, no entanto, tem outras prioridades. E erra mesmo quando a intenção é correta, como a de fortalecer as alianças no natural eixo Sul-Sul. Que obedecem a modos antigos, ao invés de buscarmos novos paradigmas. Para ganharmos apoio do mundo árabe, por exemplo, apoiamos ditaduras sanguinárias e até genocidas como a do Sudão. No âmbito latino-americano, toleramos, quando não apoiamos, o mergulho autoritário da Venezuela chavista e de seus satélites.

Agora, batemos no governo Obama, ainda fresco e lotado de problemas, por causa de uma base desdentada dos EUA na Colômbia (quando o militarismo chavista-farquista é uma ameaça muito maior ao Brasil) e pela estagnação da Rodada Doha. Amorim chegou a querer dar lição à diplomacia americana e ao próprio Obama: "Acho que esse é um período, digamos assim, não quero soar paternalista, de um aprendizado normal... Quando me refiro a aprendizado, não quer dizer ler o bê-a-bá, é você ter a vivência política do que significa e do que você precisa fazer politicamente para chegar a um resultado. Eu honestamente não sei se esse aprendizado, no caso dos EUA, já se encerrou", disse nosso humilde chanceler, que se tornou mais petulante do que sua posição lhe permite desde que tornou-se um dos líderes das negociações de Doha e passou a ser assediado pela mídia internacional.

Washington, desde os anos Bush, atolada em sua guerra ao terror islamofascista e hoje em colapso econômico, quase não tem tempo para a América do Sul. Isso abriu um espaço enorme para o Brasil agir com mais desenvoltura na região. Como um garantidor da estabilidade regional e um intermediário entre os EUA e o tal bolivarianismo.

É esse espaço vital que conquistamos que precisa ser melhor usado. Encaixar nossas novas relações com os EUA no velho antiamericanismo esquerdista é o pior que Amorim pode fazer. E é justamente o que ele faz.

Sérgio Malbergier é jornalista. Foi editor dos cadernos Dinheiro (2004-2010) e Mundo (2000-2004), correspondente em Londres (1994) e enviado especial da Folha a países como Iraque, Israel e Venezuela, entre outros. Dirigiu dois curta-metragens, "A Árvore" (1986) e "Carô no Inferno" (1987). Escreve para a Folha Online às quintas.

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