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Ver
o rap do pequeno príncipe é fundamental
Volto a Recife. Só que desta vez não tem Apipucos,
conhaque de pitanga e a biblioteca de Gilberto Freyre na velha sede
de engenho, a que me referi da última vez que escrevi sobre
a Veneza brasileira.
"Aqui as histórias de crime não têm romantismo
e nem heróis", escreve Mano Brown a respeito do Capão
Redondo, em São Paulo. Mas poderia estar se referindo a Camaragibe,
na periferia de Recife, que aparece no excelente filme
"O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas"
, de Paulo Caldas e Marcelo Luna.
Revi na tela algumas das bonitas pontes que cortam o centro da cidade.
Depois fui levado a bairros que não conheci, absorvido então
na tarefa de acompanhar a presença de Roberto Carlos na capital
de Pernambuco.
"O rap" conta a história de um justiceiro, Helinho,
que com apenas 21 anos carrega a acusação de ter matado
44 pessoas. Vemos Helinho na prisão. Ouvimos sua voz. O documentário
entra onde é difícil chegar. Esse um dos seus grandes
méritos. Mostra e destrincha a realidade superviolenta que
se tornou modo de vida (?) nas regiões pobres das metrópoles
brasileiras.
Helinho explica que só matava "almas sebosas".
O que são "almas sebosas"? Difícil explicar.
Os entrevistados procuram explicitar o significado da expressão.
A mãe de Helinho, três justiceiros mascarados -- que
pelas vozes e pelo jeito parecem garotos --, e o baterista da banda
Faces do Subúrbio, todos tentam transmitir ao espectador
o que é uma alma sebosa. São, por exemplo, os bandidos
que assaltam um trabalhador e lhe roubam os "130 contos que
ele ralou o mês inteiro para ganhar".
Começo a ficar angustiado enquanto a câmera mostra
as ruelas de terra e as casas de alvenaria sem acabamento. É
a lei da selva. Justiça pelas próprias mãos.
Helinho, na prisão, tem uma cara boa. O certo e o errado
confundem-se quando o Estado não se faz presente. Ou seja,
quando não há uma força que possa garantir
o respeito à lei, vale tudo. Volta-se ao Estado de Natureza.
Alexandre Garnizé, o baterista, funciona como cicerone. Conduz
o espectador por aquele mundo sem Estado de Direito. Apresenta a
região, lembra situações, conta histórias.
A certa altura, elogia Helinho. Ele mesmo, Alexandre, 24 anos, fora
assaltado e perdeu os 120 reais de um mês inteiro "que
ia mandar pro meu pirralho". Dá vontade de chorar.
A certa altura, Alexandre fala do lazer na periferia. Aparece um
baile à luz do dia, ao ar livre, na porta de um bar. Toca
Reginaldo Rossi e os casais dançam. Poderia ser Roberto Carlos,
ao show de quem, aliás, Rossi compareceu. As duas pontas
da minha recente experiência recifense começam a se
juntar. Roberto, embora tenha um público ne classe média,
também fala para aquele município do Grande Recife.
Alexandre discute a opção pelo rap, que os Faces do
Subúrbio praticam. Diz que rap e embolada combinam perfeitamente.
A cadência é a mesma. Os Faces do Subúrbio,
como para demonstrar a tese, cantam para a câmara, tendo por
acompanhamento apenas dois pandeiros. Tese demonstrada, eles se
levantam.
O baterista acrescenta que o movimento rap começou em São
Paulo, porém levado por um pernambucano, Nelson Triunfo,
da cidade de Triunfo, Pernambuco. Corta para os Racionais MCs, o
mais conhecido grupo de rap de São Paulo. Quando os Racionais
começam a nomear, naquele canto falado das canções
de rap, os bairros da periferia paulistana e a lista não
pára, percebe-se a extensão do conflito que está
em marcha. Não é possível, a meu ver, entender
o Brasil de hoje, sem ouvir Mano Brown, assistir "O rap"
e ler alguns livros.
Em "Capão
pecado" , romance de Ferréz sobre o Capão
Redondo, região mais violenta de SP, há um texto de
Mano Brown, dos MCs. Ele diz: "São Paulo Massacra os
+ pobres e aqui no extremo sul eu senti na pele o que é ser
preto, pobre, filho de mãe solteira negra, que veio da Bahia
com doze anos de idade. Aprendi a não gostar de polícia,
sei o que é andar muito loko três, quatro dias direto
e nem por isso atravessar o caminho de ninguém".
O texto de Ferréz é cristalino. Morador do Capão
Redondo, extremo-sul da capital paulista, ele traça um retrato
vivo do "gueto". Leitura fundamental para quem ainda tem
esperança de que o Brasil possa ser salvo da barbárie.
A discussão que permeia o livro de Ferrez é sobre
aderir ou não à criminalidade. Opção
que Ferréz e Mano Brown combatem. Em Recife, o baterista
Garnizé faz um trabalho comunitário, ligado à
percussão, com as crianças do seu bairro. Eles estão,
mesmo sem saber, procurando reconstruir o Estado desde o zero, ou
pelo menos a sociabilidade que lhe dá sustentação.
É bom que o Estado já existente, esse que recebe o
nome de brasileiro, perceba isso para apoiar e integrar tais iniciativas.
Fora disso, não parece haver caminho.
Para
quem se interessa pelo assunto, indico também o livro "Cidade
de Deus" , do carioca Paulo Lins, que leio agora e me parece
imprescindível. Recife, São Paulo, Rio de Janeiro,
uma mesma realidade. Não deixem de ler e boa sorte.
Leia
colunas anteriores
24/11/2000
- Apertem os cintos
22/11/2000 - Primeiros acordes do
balé presidencial
17/11/2000 - Conhaque de Pitanga
15/11/2000
- Volta apoteótica
10/11/2000 - Está tudo na voz
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