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  29 de novembro
  Mistura Fina
   
   

Ver o rap do pequeno príncipe é fundamental

Volto a Recife. Só que desta vez não tem Apipucos, conhaque de pitanga e a biblioteca de Gilberto Freyre na velha sede de engenho, a que me referi da última vez que escrevi sobre a Veneza brasileira.

"Aqui as histórias de crime não têm romantismo e nem heróis", escreve Mano Brown a respeito do Capão Redondo, em São Paulo. Mas poderia estar se referindo a Camaragibe, na periferia de Recife, que aparece no excelente filme "O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas" , de Paulo Caldas e Marcelo Luna.

Revi na tela algumas das bonitas pontes que cortam o centro da cidade. Depois fui levado a bairros que não conheci, absorvido então na tarefa de acompanhar a presença de Roberto Carlos na capital de Pernambuco.

"O rap" conta a história de um justiceiro, Helinho, que com apenas 21 anos carrega a acusação de ter matado 44 pessoas. Vemos Helinho na prisão. Ouvimos sua voz. O documentário entra onde é difícil chegar. Esse um dos seus grandes méritos. Mostra e destrincha a realidade superviolenta que se tornou modo de vida (?) nas regiões pobres das metrópoles brasileiras.

Helinho explica que só matava "almas sebosas". O que são "almas sebosas"? Difícil explicar. Os entrevistados procuram explicitar o significado da expressão. A mãe de Helinho, três justiceiros mascarados -- que pelas vozes e pelo jeito parecem garotos --, e o baterista da banda Faces do Subúrbio, todos tentam transmitir ao espectador o que é uma alma sebosa. São, por exemplo, os bandidos que assaltam um trabalhador e lhe roubam os "130 contos que ele ralou o mês inteiro para ganhar".

Começo a ficar angustiado enquanto a câmera mostra as ruelas de terra e as casas de alvenaria sem acabamento. É a lei da selva. Justiça pelas próprias mãos. Helinho, na prisão, tem uma cara boa. O certo e o errado confundem-se quando o Estado não se faz presente. Ou seja, quando não há uma força que possa garantir o respeito à lei, vale tudo. Volta-se ao Estado de Natureza.

Alexandre Garnizé, o baterista, funciona como cicerone. Conduz o espectador por aquele mundo sem Estado de Direito. Apresenta a região, lembra situações, conta histórias. A certa altura, elogia Helinho. Ele mesmo, Alexandre, 24 anos, fora assaltado e perdeu os 120 reais de um mês inteiro "que ia mandar pro meu pirralho". Dá vontade de chorar.

A certa altura, Alexandre fala do lazer na periferia. Aparece um baile à luz do dia, ao ar livre, na porta de um bar. Toca Reginaldo Rossi e os casais dançam. Poderia ser Roberto Carlos, ao show de quem, aliás, Rossi compareceu. As duas pontas da minha recente experiência recifense começam a se juntar. Roberto, embora tenha um público ne classe média, também fala para aquele município do Grande Recife.

Alexandre discute a opção pelo rap, que os Faces do Subúrbio praticam. Diz que rap e embolada combinam perfeitamente. A cadência é a mesma. Os Faces do Subúrbio, como para demonstrar a tese, cantam para a câmara, tendo por acompanhamento apenas dois pandeiros. Tese demonstrada, eles se levantam.

O baterista acrescenta que o movimento rap começou em São Paulo, porém levado por um pernambucano, Nelson Triunfo, da cidade de Triunfo, Pernambuco. Corta para os Racionais MCs, o mais conhecido grupo de rap de São Paulo. Quando os Racionais começam a nomear, naquele canto falado das canções de rap, os bairros da periferia paulistana e a lista não pára, percebe-se a extensão do conflito que está em marcha. Não é possível, a meu ver, entender o Brasil de hoje, sem ouvir Mano Brown, assistir "O rap" e ler alguns livros.

Em "Capão pecado" , romance de Ferréz sobre o Capão Redondo, região mais violenta de SP, há um texto de Mano Brown, dos MCs. Ele diz: "São Paulo Massacra os + pobres e aqui no extremo sul eu senti na pele o que é ser preto, pobre, filho de mãe solteira negra, que veio da Bahia com doze anos de idade. Aprendi a não gostar de polícia, sei o que é andar muito loko três, quatro dias direto e nem por isso atravessar o caminho de ninguém".

O texto de Ferréz é cristalino. Morador do Capão Redondo, extremo-sul da capital paulista, ele traça um retrato vivo do "gueto". Leitura fundamental para quem ainda tem esperança de que o Brasil possa ser salvo da barbárie.

A discussão que permeia o livro de Ferrez é sobre aderir ou não à criminalidade. Opção que Ferréz e Mano Brown combatem. Em Recife, o baterista Garnizé faz um trabalho comunitário, ligado à percussão, com as crianças do seu bairro. Eles estão, mesmo sem saber, procurando reconstruir o Estado desde o zero, ou pelo menos a sociabilidade que lhe dá sustentação. É bom que o Estado já existente, esse que recebe o nome de brasileiro, perceba isso para apoiar e integrar tais iniciativas. Fora disso, não parece haver caminho.

Para quem se interessa pelo assunto, indico também o livro "Cidade de Deus" , do carioca Paulo Lins, que leio agora e me parece imprescindível. Recife, São Paulo, Rio de Janeiro, uma mesma realidade. Não deixem de ler e boa sorte.

Leia colunas anteriores
24/11/2000 - Apertem os cintos
22/11/2000 - Primeiros acordes do balé presidencial
17/11/2000 - Conhaque de Pitanga
15/11/2000 - Volta apoteótica
10/11/2000 - Está tudo na voz

 


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