Pensata

Fernando Canzian

13/11/2006

"América profunda"

O resultado das eleições legislativas dos EUA na semana passada, com grande vitória democrata por conta do caos no Iraque, é revelador sobre o comportamento e nível de processamento de informações do eleitor americano.

E a impressão deixada, de que os EUA "acordaram" para o que Bush realmente é, pode não passar disso --impressão.

Bush invadiu o Iraque em 20 de março de 2003. Bagdá caiu a 9 de abril e em 1º de maio Bush declarou o fim das grandes operações de combate. Na época, o "presidente da guerra" desembarcou em um porta-aviões fantasiado de piloto para dar as boas novas.

De julho de 2003 em diante, o que se viu no Iraque, apesar de toda a patriotada da mídia americana naquele período, foi uma inexorável ladeira abaixo. Contados primeiro às dezenas, os soldados mortos chegaram logo às centenas e milhares.

Nos EUA, era de conhecimento geral que o governo censurava (com a bonomia dos meios de comunicação) as horripilantes imagens de soldados dilacerados por bombas ou de caixões sendo desembarcados às dúzias em solo americano.

Mas logo ficou insustentável até para a CNN não questionar a estratégia militar no Iraque. Por fim, os jornalões também trouxeram histórias saborosas sobre enormes desvios de verbas no Iraque --a maior parte em superfaturamentos para uma subsidiária da empresa que o vice de Bush, Dick Cheney, presidira.

Isso tudo ainda em 2003. Em seguida, viriam as torturas e abusos sexuais em Abu Ghraib. Depois, pedido atrás de pedido ao Congresso de verbas estarrecedoras para o Iraque, mais mortes e o caos.

Em resumo, vários meses antes da votação que reelegeu Bush, em 2 de novembro de 2004, era evidente que o Iraque se tornava uma causa perdida. Mas o partido Republicano de Bush teve uma vitória completa: venceu no voto popular, no Colégio Eleitoral, na Câmara dos Deputados, no Senado e passou a controlar a maioria dos 50 Estados.

O trunfo republicano foi a chamada "América profunda": branca, rural e religiosa ao nível do fundamentalismo da agenda de Bush, com orações diárias, verbas milionárias a grupos religiosos e defesa extrema da "moral e dos bons costumes". Em 2004, esse eleitorado deu vantagem de 3,5 milhões de votos a Bush sobre o democrata John Kerry.

Em 2006, dá-se o oposto, sem que nada exatamente novo tenha ocorrido no contexto americano para mudança tão radical na cabeça do eleitor.

Entre as duas eleições, duas diferenças fundamentais: na semana passada, o cargo de presidente não esteve em jogo e menos de 40% dos eleitores votaram --contra quase 60% em 2004.

A "América profunda" continua lá. Um resultado muito diferente daqui a dois anos não deveria surpreender caso um novo nome com a agenda moral de Bush tome seu lugar na cédula eleitoral.
Fernando Canzian, 40, é repórter especial da Folha. Foi secretário de Redação, editor de Brasil e do Painel e correspondente em Washington e Nova York. Escreve semanalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: fcanzian@folhasp.com.br

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