Pensata

Fernando Canzian

23/04/2007

Nós, os outros e o "china"

Um estudo recente e bastante completo do FMI revela que cerca da metade do crescimento de economias emergentes como o Brasil depende de fatores externos.

O levantamento leva em conta preços de commodities, ritmo de importações das economias mais avançadas, fluxos de investimentos para os emergentes, entre outros.

Fica claro que os 3,7% de crescimento alcançados pelo Brasil em 2006 (com o PIB já revisado) dependeram em grande medida do que aconteceu com o mundo, especialmente com os EUA e a China. Juntos, os dois países são hoje os dois motores da economia mundial.

Para se ter uma idéia da irrelevância brasileira no atual contexto global, basta considerar que os EUA foram responsáveis por 19,7% do crescimento mundial em 2006. A China, por 15,1%. A União Européia, por 14,7%. Já o Brasil, por 2,6%.

Se o mundo como um todo tivesse crescido a metade dos 5,4% de 2006, é possível que o Brasil evoluísse parcos 1,3%.

Pode-se argumentar, corretamente, que sorte faz parte da vida. E que Lula é um cara de sorte. O presidente surfa no melhor cenário econômico mundial dos últimos 30 anos. Basta deslizar a prancha nessa onda para ir para frente. "Tran-ki-lis", como disse nosso líder-Mussum outro dia.

Mas o Brasil é um país de urgências. Uma geração inteira já adulta nunca viu a economia crescer de verdade. Nunca teve oportunidades novas, interessantes e bem remuneradas. O número absurdo de pessoas hoje atrás de vagas em concursos públicos é apenas um dos sintomas dessa doença nacional.

Nossa sorte é que não se espera nenhuma grande turbulência financeira pela frente. Ou não. É paradoxal, mas, infelizmente para o Brasil, as ameaças parecem estar longe. Dificilmente a abulia lulista acordará de seu sono "nunca neste país" tão esplêndido.

Quase quatro meses se passaram desde a posse de Lula 2. O "PACtóide" do presidente não passa de uma campanha na TV. As tais reformas imprescindíveis são tão necessárias quanto inexistentes. A da Previdência é discutida em um fórum modorrento. A tributária certamente resultará em mais carga de impostos. Pois uma coisa é certa: nada mais certo neste país do que apostar em aumento contínuo do gasto público.

No final, com a ajuda dos outros, vamos mais ou menos bem. Mas estamos mal. É mais uma inacreditável perda de tempo. Desta vez, nas mãos do presidente mais bem avaliado desde a redemocratização e reeleito com uma vantagem de 20 milhões de votos.

Mas que ninguém se engane: os programas sociais que colocaram Lula nesse patamar têm um custo e um limite. Aparentemente, já alcançados. Agora, precisamos de outro salto, estrutural. O que o "intuitivo" Lula está esperando? Uma crise?

A metade. A metade do que crescemos ainda depende dos outros, não de nós.




"No 'tik', no laundry". A frase, proferida pelo ator Jack Nicholson no tão desagradável quanto violento "Os infiltrados", é o que há de melhor no filme. Revela muito sobre os EUA e a sua mais recente tragédia, o massacre de mais de 30 estudantes por um sul-coreano maluco, reprimido e violento da Virgínia.

A expressão brota como um bordão dos "chinas" nos EUA, responsáveis pela limpeza das roupas dos americanos em lavanderias tão quentes quanto baratas. É a regra: sem o ticket, o cliente não pode levar a sua roupa limpa.

A frase de Nicholson no filme, em uma transação criminosa com os "maus chinas", é carregada de preconceito. Revela como os americanos, senhores da ordem, podem ser perversamente cínicos ao serem cobrados pelos "chinas" do outro lado do balcão em sua obrigação: a de levar a porcaria do "tik" à lavanderia. Mostra, via Hollywood, a ponta do iceberg do que ocorre nas relações diárias entre americanos e "os outros".

Nada justifica o recente massacre nos EUA. Aliás, quase nada, já que ele aconteceu. Mas cabe lembrar que os verdadeiros EUA são um país branco, protestante e estranho. A ladainha da "terra da liberdade", do "leite e do mel" não se encaixa com a realidade de muitos imigrantes ou dos próprios negros norte-americanos na Nova Orleans pré e pós Katrina --ferrados no durante e no depois.

Também não se encaixa na hipercompetitividade e na execração observável, diária, contra os menos preparados, fracos e de pele um pouco menos clara. Seja na escola de tecnologia da Virgínia ou no mercado de trabalho do dia a dia --everywhere.

A ladainha é puro marketing de um capitalismo muito avançado e implacável. Que se alimenta e vibra com o sucesso de cada um, com a competição entre todos. Com franca isonomia legal (por certo um extraordinário avanço), mas com forte dose de preconceito racial nas vantagens comparativas.

Parece natural que algo de doentio saia disso.




O colunista estará em férias nas próximas semanas.
Fernando Canzian, 40, é repórter especial da Folha. Foi secretário de Redação, editor de Brasil e do Painel e correspondente em Washington e Nova York. Escreve semanalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: fcanzian@folhasp.com.br

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