Pensata

Fernando Canzian

11/09/2006

Na calada da noite, vultos

Na véspera do 7 de setembro, o Congresso declarou a independência financeira a várias carreiras do funcionalismo público. Com uma rapidez incrível, votou, a cada cinco minutos, 40 projetos e medidas provisórias aprovando reajustes e "reestruturação de carreiras".

O impacto dos aumentos, alguns entre 15% e 18% em um ano de inflação abaixo de 4%, será de R$ 5,3 bilhões/ano. O valor equivale a quase dois terços do que se gasta anualmente com 11,5 milhões de domicílios atendidos pelo Bolsa-Família.

Além da simbiose Executivo-Legislativo no mensalão, os parlamentares fizeram escola no governo Lula. No apagar de 2004, na véspera do Réveillon, a equipe econômica introduziu na surdina a MP 232, que aumentava impostos para empresas prestadoras de serviço. O governo só recuou depois que uma rebelião empresarial tornou a MP politicamente insustentável.

Sobre os aumentos do 7 de setembro, o presidente da Câmara e aliado de Lula, Aldo Rebelo, declarou: "Eram projetos já aprovados nas comissões, já negociados. Creio, então, que poderiam ser aprovados". Sem entrar no mérito dos reajustes, difíceis de explicar em um país de renda estagnada, alguém aí tomou conhecimento dessa negociação? Ou da notícia dos reajustes, divulgada no início do feriadão?

Está na cara que o Brasil já não suporta mais dinheiro correndo pelo ralo. Mas esse é o exemplo que temos de um Legislativo que se dissolve em meio à sujeira do mensalão e das sanguessugas. Idem no caso do governo. Só no Poder Executivo, "a negociação" incluiu aumentos para 30 carreiras.

Também no lusco-fusco do feriadão, o ex-presidente FHC aproveitou a maré vazante em seu partido para denunciar. Em uma longa mensagem indignada aos eleitores do PSDB, atacou o mensalão e outras mazelas e insuficiências do governo Lula.

Algum tempo já correu desde que FHC foi para casa. Mas é bom lembrar que o maior projeto de interesse de seu governo, levado ao Congresso na moita, foi a emenda da reeleição. Aprovado e depois denunciado por gravações que revelariam deputados recebendo R$ 200 mil por voto, o projeto foi objeto de uma CPI abafada.

Em sua carta aos tucanos, FHC aproveita para tirar umas casquinhas. Diz ele que Lula manteve o que "era óbvio" em seu governo, como os superávits fiscais para equilibrar a dívida pública. Essa política, para o bem ou para o mal, é o que mantém de pé a atual estabilidade econômica.

O tempo passa. FHC deve ter esquecido de nos lembrar de uma cena constrangedora, ao vivo e na TV, na Brasília de 1999, meses depois de ganhar a sua tão querida reeleição. Depois de explodir a dívida pública com juros lunáticos para sustentar o populismo cambial do dólar a R$ 1, foi o número dois do Fundo Monetário Internacional à época, Stanley Fischer, quem anunciou (ao lado de uma equipe econômica muda) a política de superávits maiores.

Era a condição do Fundo para emprestar dinheiro a um Brasil que derretia. Entre julho de 98 e janeiro de 99, o Brasil perdeu US$ 34 bilhões em reservas tentando defender o real da reeleição. Acossado pelo Fundo e com horror a ser "o gerente da crise", restou a FHC cumprir a ordem de Washington.

Hoje, ninguém se recorda dessas coisas. Com o tempo, também vão desbotar as indecências do mensalão, a inoperância do governo Lula e a sorrateirice generalizada. No futuro, o palpável e o real será o de sempre --um presente medíocre e penosamente sólido, feito de um passado de sombras.

Nesse ponto, não há como discordar de trecho da carta de FHC: "A podridão que encobre a "política" está nos transformando em vultos". Antes que se esqueça, isso já faz algum tempo.
Fernando Canzian, 40, é repórter especial da Folha. Foi secretário de Redação, editor de Brasil e do Painel e correspondente em Washington e Nova York. Escreve semanalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: fcanzian@folhasp.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca