Pensata

Vinicius Torres Freire

07/01/2004

450 anos de mau humor: um manual

A festa é sua? É nossa? É dela?

Entre o Natal e o Carnaval haverá a avalanche dos 450 anos de São Paulo. O número de bobagens midiáticas, políticas e propagandísticas e de clichês sentimentais será infinito enquanto dure a "festa". Como despretensiosa contribuição ao festejo do natalício paulistano, oferece-se a primeira parte do seguinte "Manual de Boas Maneiras e Idéias Prestantes nos 450 Anos de São Paulo", mui modesta e mal-humorada tentativa de desencorajar a tolice da ocasião e as idéias prontas e outras papagaiadas sobre a cidade.

"Sampa" 1

Jamais dizer "Sampa" (ai!). Evitar as pessoas que insistem em dizer "Sampa" quando se referem a São Paulo. Nenhum paulistano prestante diz "Sampa", apenas forasteiros e moradores deselegantes o fazem. Aquele compositor escreveu "Sampa" quando era então um rapaz vindo das províncias, que se encantou com aquela esquina que, a julgar por filmes e fotos, era tão feia, suja, malcheirosa e desinteressante como hoje. Dizer "Sampa" é algo ainda mais provinciano do que ser paulistano.

"Sampa" 2

Quase todas as esquinas de São Paulo são feias, sujas e desinteressantes.

"Sampa" 3

Quase não é possível explicar por que não se deve dizer "Sampa" (é constrangedor demais). É algo que simplesmente não se diz, assim como não se deve mastigar de boca aberta, furar filas, conversar no cinema, parar o carro sobre a faixa de pedestres, chamar bar de "barzinho", dizer "vou estar te ligando", usar a palavra "disponibilizar" e coisas assim.

"Sotaque paulistano"

Não existe tal coisa como um "sotaque paulistano" (também não existe um sotaque carioca só, nem um nordestino só etc). Existem vários, a depender da origem da sua família, do bairro em que você foi criado, da educação formal que você teve _é perceptível a diferença, para quem sabe escutar. Piadas a respeito em geral são estereotipadamente tolas e chatas.

Dois chopes, um idiota

Evitar pessoas que dizem "um chopes, dois pastel" e acham isso engraçado, seja paulistano ou não.

Arquitetura da destruição

Os paulistanos prestantes deveriam apoiar a implosão do prédio da Assembléia Legislativa e a transferência da sede paulista do Exército, ambos no Ibirapuera, a fim de aumentar a área o parque. O prédio da Assembléia é horrendo, assim como seu estacionamento acintoso e a maioria dos deputados (de resto quase totalmente inúteis e caros), que deveriam ser transferidos para qualquer outro lugar, como o centro velho ("viva o centro"), ou sabe-se lá para onde, tanto faz. Mais: o que o Exército faz no meio da cidade?

Precisamos de mais Ibirapuera, um dos poucos lugares agradáveis, democráticos e verdes da cidade.

Arquitetura da destruição 2

Desconfiar da maioria das pessoas ricas e/ou célebres (ui!) que venham a dizer qualquer coisa acerca de "adorar" (ui!) a cidade. Por um motivo ou outro, a maioria dos paulistanos detesta a cidade. Uns, porque vivem em favelas, cortiços e outros cafofos indignos. Outros, porque não se importam em arruinar a cidade ou porque convivem alegremente com quem a arruina. A elite paulistana destruiu ou destrói alegremente seus casarões (Campos Elíseos, Higienópolis, Paulista), os bairros de sobrados e vilas da classe média média (Lapa, Pompéia, Vila Romana, Pinheiros, Vila Madalena, Moema). Com uma ou outra exceção, em zonas muito ricas, a maioria dos bairros foi loteada sem se deixar espaço para uma praça ou parque.

Os tatus, a inteligência, Ademar, Maluf e Marta

Nos anos 30 e 40, a elite política de São Paulo dizia não ser tatu para construir metrô, "buraco de tatu", riam. Nos anos 70 e 90 e agora, a elite faz buracos para passar com seus carros. Metrô?

Os donos da rua, Marta e Alckmin

Detestar os donos das ruas. Empresas que transportam valores, "buffets", donos de bingo, donos de alguns restaurantes e alguns clientes de escolas particulares decidiram que parte das ruas da cidade é deles. A prefeitura e a CET de Marta Suplicy e a polícia de Geraldo Alckmin não estão nem aí. Os tanques de guerra das transportadoras param em fila tripla nas ruas em que ficam essas empresas, à vontade. A meganha que toma conta dos execráveis bingos assusta transeuntes e faz da rua estacionamento particular. A meganha dos "buffets" coloca cones nas ruas, toma a liberdade de transformar seus funcionários em guarda de trânsito, bloqueia avenidas como a Angélica, a Rebouças e tantas outras. Prefeitura e Estado fazem algo? Não.

Belezura

Quando não destrói imediatamente a cidade, a elite paulistana enfeia ruas, avenidas e prédios até o ponto em que o ar fique tão irrespirável ou a vista fique tão poluída a ponto de ninguém mais mostrar apreço pelo lugar. Aí, então, passam o trator e erguem edifícios horrendos. Ser bom arquiteto é uma maldição em São Paulo

Belezura 2

Exagero? Considerem o Minhocão, que matou parte do Centro, da Barra Funda e de Santa Cecília. Considerem a avenida Brasil, parte da avenida Europa. Empresas compram os casarões, colocam fachadas medonhas, muram as casas simpáticas, poluem a vista com letreiros berrantes e exagerados, balões, outdoors e todo o tipo de cafajestice e cafonice urbana.

"Vida cultural"

Sorrir amarelo e levantar as sobrancelhas quando um forasteiro disser "São Paulo é ótima porque tem uma grande vida cultural" (ui!). A "vida cultural" jamais foi vista, ouvida ou cheirada, pois "vida cultural" é um clichê idiota. "Vida cultural" talvez seja ler Proust. Ter mais cinemas que Macambira da Serra das Farinhas, por exemplo, cinemas que passam predominantemente lixo, não constitui "vida cultural".

Ao pé da letra da palavra "cultural", na verdade, a maior parte da "vida cultural" paulistana se resumiria a fazer, contra a vontade e sem querer, a etnografia dos selvagens da rua, a antropologia da miséria, a etnologia das gangues etc.

"Vida cultural" 2

Pior, a maioria dos paulistanos não tem tempo para isso, cinema, museu etc. Muito dos que têm tempo conhecem melhor museus americanos e europeus que os paulistanos _ou melhor, foram mais vezes a museus lá fora do que na cidade, pois continuam a não conhecer tanto uns como outros.

Fios, favela do ar

Cidades bonitas, em geral, enterraram rua fiação de eletricidade. Fiação aérea é uma favelização do ar. Com tanta "responsabilidade social" na praça, as empresas de telefone e TV a cabo não poderiam ajudar a enterrar os fios?

Vinicius Torres Freire é Secretário de Redação da Folha, onde já foi editor de Dinheiro, Opinião, Ciência e Educação. Escreve para a Folha Online às quintas-feiras.

E-mail: mvinicius@folhasp.com.br

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