Pensata

Vinicius Torres Freire

29/01/2004

A cor do pecado da cor

Maldade da raça da cor do pecado?

Além de título de novela da Globo e lema de tanto clichê racista disfarçado, "Da Cor do Pecado" é o nome de um samba-choro composto por Bororó em 1939, gravado por Sílvio Caldas, depois por João Gilberto, Elis Regina, Nara Leão e tanta gente mais: "Esse corpo moreno/ cheiroso, gostoso/ que você tem/ é um corpo delgado/ da cor do pecado /que faz tão bem...". Lá pelas tantas, a letra diz: "E quando você me responde/ Umas coisas com graça/ A vergonha se esconde/ Porque se revela/ A maldade da raça". Uhm. Maldade da raça? Ou elogio da "raça"? Ou os dois?

Pardo, moreno, moreninho, escurinho

Gente "parda", como este jornalista, e escaldada na violência do racismo cordial brasileiro, fica logo cismada ao ouvir ou ler clichês como "da cor do pecado" ("parda", entre aspas, pois esse é o nome horrível dado pelo IBGE às pessoas que não são nem brancas nem negras, o que parece uma fantasia retórico-estatística-genética, ainda mais no Brasil desde sempre misturado. "Pardo", de qualquer modo, soa como nome de papel de embrulho).

Voltando ao assunto: por que ainda em 2004 alguém recorreria sem mais a chavões como "cor do pecado"? Afora para os maníacos do politicamente correto, é possível dar um desconto histórico para "racismo cordial" das antigas letras de samba ("o teu cabelo não nega, mulata", etc). Mas em 2004?

Adivinhe qual é a cor do pecado?

Na propaganda que a Globo fez publicar nos jornais, aparecem os rostos de vários dos atores da novela. Entre eles, o rosto da linda Taís Araújo, primeira atriz negra a aparecer como estrela principal em novelas da Globo. No título do anúncio, a pergunta: "Adivinhe qual é a cor do pecado?"

Imagina-se, a princípio, que a emissora talvez esteja pregando uma peça em afobados militantes da causa negra, maníacos do politicamente correto, críticos apressados etc. Na verdade, talvez houvesse uma ironia qualquer no título da novela, quem sabe.

Mas não, não há. O autor da novela disse a respeito da sua história que não vai fazer "coisa sociológica" ou que vá "criar polêmica". Tudo bem. Nem se imagina também que a emissora, o autor da novela, o diretor da novela etc etc etc, sejam racistas, pelo contrário. Então por que utilizar sem mais um dos mais antigos, enraizados, ibéricos e católicos estereótipos a respeito do homem negro, da mulher negra em particular: o "negro sensual"?

O pai Tomaz, Al Jonson e o negro de alma branca

No final dos anos 60, "A Cabana do Pai Tomaz", um romance americano piegas, de um paternalismo racista, virou novela brasileira. Os patrocinadores não queriam um negro no papel principal. Puseram Sérgio Cardoso pintado de preto, com "blackface", como Al Jonson de "O Cantor de Jazz", o primeiro filme falado e o primeiro musical da história (1927). Nos dois casos, o negro não é o objeto sensual, mas é "bonzinho", o negro de "alma branca", como eram os negros das novelas baseadas no xaroposo romance do romantismo brasileiro. O negro já foi brejeiro. O negro costumeiramente é personagem periférico, da cozinha, tipão do núcleo popular das novelas. Ou era "Xica da Silva". Agora, enfim, é estrela como qualquer outro ator poderia ser estrela, sem qualificativos, preto, branco, amarelo. Mas é esse mesmo o caso? Por que então lembrar "a cor do pecado", o clichê racista histórico? Ninguém percebeu o fora ao dar o nome à novela?

Chavinismo, machismo e racismo homeopáticos

Talvez a tolerância com a estupidez, a convivência naturalizada com miríades de preconceitos ou a indiferença estupidificada das pessoas que vivem diante da televisão permitam que o preconceito e outras grossuras do espírito circulem à vontade, sem que ninguém note. Há agora mesmo uma propaganda de automóvel na TV em que a posse de um carro e o sexo são associadas de maneira simplória e diretamente burra: o carro passa veloz pelas ruas e estradas e as saias das mulheres levantam (há no final uma intenção irrealizada de humor: o carro vai passar diante de um padre de batinas. A saia dele também vai levantar? Há, há.). Enfim, o comercial sugere: possua o carro "x" que as mulheres levantarão suas saias para você. Obviamente, não se trata de dizer que o comercial faz propaganda do machismo ou coisa que o valha. Mas o comercial faz circular a estupidez com naturalidade e naturaliza a estupidez (há gente para quem de fato um carro pode levantar saias, homens e mulheres, aliás), assim como o título da novela ("a cor do pecado") naturaliza um chavão racista suave e cordial, sem que pareça fazê-lo: é chauvinismo homeopático, que se desculpe o oximoro.
Vinicius Torres Freire é Secretário de Redação da Folha, onde já foi editor de Dinheiro, Opinião, Ciência e Educação. Escreve para a Folha Online às quintas-feiras.

E-mail: mvinicius@folhasp.com.br

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