Pensata

Vinicius Mota

09/01/2005

Mandela está certo (de novo)

"Anuncio que meu filho morreu de Aids". Foi dessa forma lacônica que Nelson Mandela, aos 86 anos, revelou ao público a doença que matou Makgatho, um dos quatro filhos que teve no seu primeiro casamento. Mandela, que ajudou a derrotar o Apartheid na África do Sul, um dos regimes mais odiosos do século 20, depois que deixou a Presidência agarrou-se à bandeira do combate à epidemia em seu país.

Segundo as Nações Unidas, um em cada cinco adultos sul-africanos está infectado com o vírus da Aids. Para ter idéia do que isso significa, basta comparar com o Brasil. Aqui, o número de infectados é estimado em 600 mil. Se multiplicarmos a cifra brasileira por 8, ainda não atingiremos os 5 milhões de portadores do HIV que vivem na África do Sul. E a população sul-africana, de 45 milhões, é cerca de um quarto da brasileira.

O gesto de Mandela, dirigido a conscientizar seus concidadãos a respeito dos perigos da doença, pode soar banal aos brasileiros, acostumados a lidar mais diretamente com o tema da Aids, expostos a campanhas de prevenção agressivas já há muitos anos. Quem se lembra dos prolegômenos --para usar um termo de que os filósofos gostam-- do debate sobre Aids no Brasil, lá nos anos 80, vai notar semelhanças. A carga de ignorância científica sobre a Aids abria enorme espaço para obscurantismos de toda espécie. Grupos, em regra religiosos, agiam com muito mais força e êxito do que hoje para criar obstáculos à disseminação de campanhas pelo uso da camisinha ou de alerta a mulheres casadas para que tomassem cuidado com seus maridos.

Pensando bem, talvez o caso da África seja ainda pior. ONGs acusam o presidente do país, Thabo Mbeki (do mesmo partido de Mandela), de ter questionado o fato, cientificamente comprovado, de que o HIV é o agente causador da Aids. Mbeki nega ter feito a afirmação. Mas já declarou publicamente que não conhecia ninguém que tivesse morrido de Aids.

A hipocrisia e o varrer a verdade sobre a Aids para debaixo do tapete são tão constantes na África do Sul que Mbeki pode ter sido cinicamente sincero (só não pode continuar a dizer isso depois da morte de Makgatho). Foi apenas a partir de meados de 2003 que seu governo começou a oferecer pela rede pública as drogas que, no Brasil, conseguiram conter a escalada de mortes em razão da doença. Mas o programa africano está longe de obter a universalidade que o brasileiro conquistou.

Além disso, a desinformação campeia. Especialistas dizem que até dois terços das pessoas infectadas --algo como 3,3 milhões de sul-africanos-- simplesmente não sabem que têm o HIV. O potencial de aumento vertiginoso de infecção numa situação dessas é enorme. Mandela havia sido suficientemente maduro, após deixar a Presidência, para fazer a autocrítica de que seu governo subestimou o problema da Aids. Agora, não hesitou em transformar um momento familiar doloroso num poderoso alerta público. "Médicos, enfermeiras e outros servidores da saúde nos hospitais agora vão falar sobre isso: ´Você sabia que o filho do Mandela morreu de Aids?` E isso vai gerar uma péssima dor de consciência nos membros de famílias que decidirem que não podem sair do hospital e dizer corajosamente que seu ente querido morreu de Aids". Mandela, mais uma vez, está do lado certo da História.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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