Pensata

Vinicius Mota

16/01/2005

Dois aviões em juros todo dia

A cada 24 horas, ao longo dos oito meses que se passaram de abril a novembro do ano passado, o setor público brasileiro transferiu aos detentores da sua dívida mais de R$ 300 milhões. É como se, nesse período, dois AeroLulas novinhos em folha houvessem sido entregues pelo governo a seus credores internos todo santo dia. E isso só a título de juros da dívida interna. Sem contar a amortização dessa mesma dívida e sem levar em conta o serviço da dívida externa.

Nesses oito meses a conta total dos juros internos superou os R$ 70 bilhões. Isso significa que, de cada R$ 100 de tudo o que foi produzido no Brasil no período, R$ 6 foram transferidos aos detentores da dívida pública interna.

O governo, deixemos de lado as empresas estatais, não produz nem sequer um parafuso. A capacidade que ele tem de honrar sua dívida está diretamente relacionada à sua capacidade de arrecadar impostos e é inversamente proporcional a seus gastos nas atividades para as quais o Estado existe (pagar a funcionários, fazer saneamento básico, equipar escolas e hospitais etc.).

A turma dos que comandam a política econômica brasileira há mais de uma década difunde a fórmula mágica para resolver a situação. Diz que o Estado, perdulário, precisa conter seus gastos. Dessa forma, não precisaria aumentar os impostos, como tem feito há dez anos, para demonstrar solvência a seus credores. Na verdade, desconfio, esse é um discurso em que nem eles acreditam.

No fundo, estão satisfeitos com a fórmula adotada até aqui, que é a de o governo separar um filão cada vez maior de tudo o que arrecada (e não importa se arrecada mais) para o pagamento dos juros de sua dívida. É o chamado superávit primário, elevado novamente no ano passado para 4,5% do PIB. É dessa forma que nossos empolados gestores da política econômica têm obtido liberdade quase total para manter a taxa de juros nas alturas também há mais de uma década.

Mas note o leitor que essa política não pune apenas o Estado, que foi acumulando uma montanha de obrigações financeiras ao longo desse período. Ela pune diretamente a sociedade, o emprego e a produção. Esses 4,5% do PIB são retirados do circuito do consumo e do investimento, através da tributação, mas não são gastos na outra ponta (o Estado não usa esse dinheiro para contratar gente, fazer estradas, comprar material escolar etc.).

São transferidos para o patrimônio de uma pequena classe de pessoas mais abastadas (bem mais abastadas do que a média dos brasileiros) e lá ficam, parados, à espera de mais juros, que, à diferença de Godot, sempre vêm.

Nos últimos seis anos, houve pelo menos duas oportunidades de mandar essa gente para o olho da rua e buscar novos arranjos de política econômica. A primeira na crise do início de 99; a segunda na crise do final de 2002. Mas tanto FHC como Lula sucumbiram ao terrorismo financista e mantiveram essa linhagem de economistas, em versões pioradas, em postos-chave na Fazenda e no Banco Central. E eles continuam executando a política da mesma forma. Continuam flertando com o apocalipse, mantendo o câmbio sobrevalorizado através de juros tsunâmicos; desperdiçando chances, como fizeram no ano passado, de desendividar o setor público com maior velocidade.

Quando vem a crise, eles saem do governo e partem para o outro lado do balcão. Vão se refestelar com os juros graúdos que eles próprios nutriram. Ato contínuo, outros da mesma padronagem assumem, ávidos para mostrar que este é um país que cumpre seus compromissos e honra seus contratos. E a grande maioria da sociedade que se vire para pagar a conta.

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Esta coluna entra em recesso [férias] nas próximas quatro semanas. Volta no dia 20 de fevereiro.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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