Pensata

Vinicius Mota

13/03/2005

Um retrato da Bolívia

A imagem foi publicada na "Folha de S.Paulo" na quinta-feira, dia 10 de março (página A-14). Da direita para a esquerda perfilam-se Román Loaisa, Jaime Solares, Roberto de la Cruz e Evo Morales. Este último o líder mais popular da oposição boliviana; os três primeiros, figuras de proa do sindicalismo antigovernista do país.

O cânone estético da atualidade não resiste ao primeiro olhar. Homens baixos, barrigas pronunciadas, de uma tez morena-encharcada, rostos marcados, com as mãos dadas acima das cabeças a demonstrar unidade. As vestes também destoam. De la Cruz, de chapéu escuro na cabeça, é o único a usar algo parecido com um traje andino, ainda assim numa composição caótica com tecidos baratos que podem ter sido fabricados em qualquer lugar do mundo.

São atores mais recentes da precária modernização política da América do Sul.

As faces, a cor da pele, os cabelos, as expressões trazem todos de seus antepassados pré-colombianos. Ao fundo da sala em que estão, penduradas na parede azul-desbotada, os observam duas imagens emolduradas carregadas de significado. À esquerda, Simón Bolívar, o mais conhecido herói das guerras de independência da América do Sul, que foi, por um período breve (agosto a dezembro de 1825), o primeiro presidente da Bolívia. À direita, o sucessor imediato de Bolívar na Presidência do país, Antonio José de Sucre Alcalá, também destacado combatente contra a dominação espanhola.

Na sala da Confederação dos Trabalhadores da Bolívia, em La Paz, os perfis dos retratos de Bolívar e Sucre Alcalá convergem para observar a celebração do "antipacto" da oposição boliviana, 175 anos depois de acabada a era dos dois libertadores. Bolívar e Sucre lutavam contra a Espanha; os antipactuantes indígenas lutam contra a política do presidente Carlos Mesa, cuja linhagem certamente está mais próxima da do grupo de aristocratas do qual saíram os libertadores da América.

Apesar da grandeza quase mítica dos heróis que ocuparam a cadeira de Mesa no passado, o país é pobre, paupérrimo. Quatro semanas de exportações brasileiras eqüivalem a tudo o que a Bolívia produz em um ano. Segundo a Cepal, o PIB per capita no país andino rodeia os US$ 1.000 (um quarto da cifra no Brasil). Mais de 60% da população está abaixo da linha da pobreza. E a pobreza, na Bolívia, tem o mesmo rosto e a mesma origem dos antipactuantes.

Hoje, a fonte emergente de renda no país que foi batizado em homenagem a Bolívar, além de algum surto recente em culturas agrícolas como a soja e na mineração do zinco e do estanho, é a exploração e a exportação do gás natural. Morales emergiu para a política como líder dos cocaleiros, levantando a bandeira dos plantadores tradicionais da folha contra os programas de erradicação do plantio implementados com ajuda norte-americana. Mas o foco de sua luta e de seus companheiros sindicalistas da república de El Alto (QG das manifestações oposicionistas, nos arredores de La Paz) agora é outro: participar da riqueza gerada pela exploração do gás natural, realizada basicamente por empresas estrangeiras, entre elas a brasileira Petrobras.

A oposição quer que o Estado fique com metade dos lucros gerados nessas operações a título de royalties. A lei de Mesa, que tem todas as condições de aprová-la no Parlamento, prevê 18% de taxa. Há uma disputa, portanto, pela renda emergente na Bolívia entre representantes das elites tradicionais, multinacionais estrangeiras e, eis a novidade, pela oposição "indígena" comandada, entre outros, por Morales, e cuja força, ainda bastante calcada no poder de mobilização popular, já contribuiu para a derrubada de um presidente em 2003.

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É curioso notar que, quando interesses de fato (dinheiro) entram em jogo, vê-se logo de que lado o governo brasileiro fica. A união bolivariana propalada por Hugo Chávez pode valer para o Fórum Social Mundial de Porto Alegre, e a sua retórica, por vezes lançada a esmo pelo presidente brasileiro em terrenos neutros, para embalar os ouvidos de uma certa esquerda. Mas, quando está em jogo a Petrobras, Lula preferiu não se perfilar ao lado dos companheiros sindicalistas bolivianos.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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