Pensata

Vinicius Mota

19/03/2005

Quixote testemunha o nascimento (e a morte?) do romance

O filósofo Walter Benjamin (1892-1940) cunhou algumas frases ácidas a respeito do romance como gênero literário. "A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los".

Sobrou para a obra que Miguel de Cervantes publicou há quatro séculos.
"O primeiro grande livro do gênero, 'Dom Quixote', mostra como a grandeza de alma, a coragem e a generosidade de um dos mais nobres heróis da literatura são totalmente refratárias ao conselho e não contêm a menor centelha de sabedoria", escreveu o pensador alemão --que se suicidou na fronteira da França com a Espanha quando tentava fugir da perseguição nazista aos judeu-- em um pequeno mas razoavelmente conhecido ensaio intitulado "O Narrador", de 1936.

Com as frases lançadas assim, retiradas do contexto da argumentação do filósofo, pode parecer que Benjamin fosse uma voz a serviço da tradição contra um dos monumentos culturais da modernidade, que é justamente o romance. Mas, se o filósofo de fato exagera, não o faz para desancar o romance, mas para marcar a ruptura que ele representou em relação ao mundo cultural em que atuava o narrador.

Narradores como o russo Nikolai Leskov (1831-1895), mote da discussão do ensaio de Benjamin, que eram vetores de uma tradição fundada na cultura oral e na experiência coletiva. As histórias que contavam em geral orbitavam em torno da idéia do acontecimento exemplar que emana sabedoria através da sua força alegórica, pois ali não cabiam explicações nem comentários, apenas o acontecimento narrado.

É com essa tradição que o romance rompe, argumenta Benjamin. A experiência coletiva se quebrou e o indivíduo está isolado. A linguagem alegórica já não é suficiente, é preciso esmiuçar os fatos, explicar, comentar. A tradição oral esvanece e emerge o grande substrato da difusão da palavra escrita, o livro. "O que separa o romance da narrativa --e da epopéia no sentido estrito-- é que ele está essencialmente vinculado ao livro", completa o filósofo. Cervantes precisa do livro para que saibamos de sua invenção individual, o Quixote. Ao Aquiles e ao Ulisses homéricos, assim como ao mito das raças hesiódico, bastaram cordas vocais e sensores auditivos. O substrato escrito é secundário à linhagem de Eurípedes, Heródoto e Leskov. É um meio de registrar não uma invenção genuína e individual mas fatos que a eles chegaram pela tradição oral, mítica, através dos séculos.




Em 1605 Cervantes publicava o primeiro volume de "Dom Quixote". O segundo volume só seria lançado em 1615. Até 1637, nove outras edições do romance consideradas de relevante importância textual foram publicadas. Edições em que o autor, que morreu em 1616, e/ou seus primeiros editores puderam fazer alterações - mudanças que vão desde correções de grafia até a reescritura de pequenos trechos.

Quatrocentos anos depois da primeira publicação, conhecida como "edição princeps", pesquisadores da Universidade A&M Texas lançaram a edição eletrônica "variorum" da obra de Cervantes. Por meio dela, qualquer um conectado à internet agora pode visualizar, simultaneamente com a sua respectiva transcrição, cada centímetro quadrado das páginas da edição "princeps" --privilégio antes reservado apenas a alguns estudiosos, pois apenas 12 exemplares permaneciam fisicamente acessíveis. Além disso, o programa dá acesso simultâneo à princeps e a às outras nove edições publicadas até 1637, de modo que se possa facilmente visualizar todas as alterações ocorridas ao longo das edições; permite que o usuário crie sua própria versão do "Quixote", selecionando variações ao longo dos textos; que tenha acesso a comentários de especialistas sobre essas variações; e que faça suas próprias anotações, associações e classificações.

Em suma, nesse experimento o livro transformou-se em mero pretexto. Já não é necessário para carregar o romance. Se é que não "matarão" o livro e o romance, as inovações contidas nas mais avançadas edições eletrônicas já prometem abalar ao menos um ramo editorial, o das "edições críticas" --aquelas em que um sábio, ou um grupo deles, tenta restabelecer "a verdade" do texto original e organizá-la num espaço limitado e seqüencial de papel carregado de notas de rodapé.

"Na onda digital, o que nós gostaríamos de ter acesso como acadêmicos, críticos e leitores vai rapidamente ultrapassar a capacidade das edições acadêmicas impressas de nos satisfazer", escreveu Peter Shillingsburg, um dos estudiosos das edições eletrônicas. Outro deles, Charles Ross, é mais enfático: "O nascimento do leitor-como-editor terá de se dar ao custo da morte da edição crítica".

Em que obra literária de nossa tradição as batalhas para estabelecer a "verdade do texto" podem ter sido maiores e mais sangrentas (literalmente) do que na Bíblia? Na base da Reforma de Lutero, apenas para sacar um exemplo rápido, estava, entre outros motivos, uma questão de tradução das escrituras. No início do século 17, um dos maiores esforços de sábios e intelectuais para "restabelecer" a Bíblia original, sob os auspícios do rei Jaime 1° da Inglaterra (que acumulava o título de Jaime 4° da Escócia), resultou na "Versão Autorizada" de 1611, que subsiste até hoje como uma espécie de cânon na língua inglesa.

A Universidade da Virgínia, nos EUA, hoje oferece aos internautas tementes ou não a Deus o acesso a uma edição eletrônica da Versão Autorizada do rei Jaime. E, para desespero dos puristas, nos dá a opção de cotejar a edição, trecho por trecho numa tela divida ao meio, com uma outra tradução das escrituras para o inglês. A dois cliques de distância está o site do Projeto Perseu, onde há uma terceira tradução inglesa da Bíblia em versão eletrônica, que em um clique se transforma na tradução latina de são Jerônimo, a famosa (infame para a tradição luterana) Vulgata. Abrindo na tela o Evangelho de João, pode-se relativizar uma versão muito difundida em português do primeiro verso --"No princípio era o Verbo"-- com a versão em grego, a língua utilizada pelos autores do texto. Para quem não entende grego, como eu, basta clicar no termo "lógos" --ou no "Verbum", na versão latina-- que um dicionário instantaneamente aparecerá na tela com o significado em inglês: "Word" (palavra).

Quer dizer que o mais correto seria "No Princípio era a Palavra"? Não vou entrar nessa espinhosa discussão. Basta-me notar que as diversas versões e instrumentos eletrônicos de fácil acesso dão fôlego quase infinito a debates como esse e que o potencial de avanço dessas ferramentas ainda é enorme.

O livro definitivamente perdeu a primazia que detinha nos setores em que se consome e se produz conhecimento de vanguarda, inclusive nas Humanidades, um bastião tradicional de resistência a esse tipo de mudança. Parece uma questão de (pouco) tempo para que os seus efeitos se disseminem entre os consumidores de cultura em geral. As conseqüências dessa grande mudança no padrão cultural --se serão comparáveis à da revolução do livro e do romance-- carecem ainda de um Benjamin que as decifre.

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    Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

    E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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