Pensata

Vinicius Mota

10/04/2005

O hipermercado místico das religiões

Os habitantes quase sempre circunstanciais do Vaticano já vivem no paraíso. No paraíso fiscal. O padre jesuíta e cientista político americano Thomas Reese dá notícia de que, pelo menos até 1996, havia um supermercado, um posto de gasolina, uma loja de roupas e outra de equipamentos eletrônicos na pequena cidade-Estado de meio quilômetro quadrado. Como os produtos lá vendidos são livres dos impostos italianos, o pequeno complexo comercial, a priori restrito aos empregados do Vaticano e aos religiosos de Roma, tornou-se bastante popular.

"Todos em Roma parecem ter um amigo que compra coisas para eles no Vaticano", disse a Reese um funcionário que, por razões talvez menos espirituais, pediu para não ser identificado. Essa espécie em miniatura de Ciudad del Este para os romanos, um duty-free cravado no seio de onde se administra o catolicismo de 1 bilhão de terráqueos, de acordo com o jesuíta dos EUA é especialmente desejada para adquirir gasolina, bebidas alcoólicas e cigarros (produtos altamente taxados na Europa em geral e na Itália em particular).

Alguns cardeais, como o americano Edmund Szoka, designado por João Paulo 2° para presidir a Comissão Pontifícia do Estado da Cidade do Vaticano (que cuida diretamente da gestão daquele pequeno país), achavam errada a venda de cigarros pelo Vaticano. Mas, até 1996 pelo menos, pregavam para o deserto: "O Vaticano está no centro da Itália, onde fumar muito ainda é bastante comum", comenta Reese, com dose detectável de acidez jesuíta. O comércio desses bens, ao que consta, dá lucro para o Vaticano.

Não foi desse supermercado que o cardeal eleitor Geraldo Magella Agnello, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, se lamentou em entrevista ao repórter da Agência Folha Luiz Francisco: "Vivemos em um mundo subjetivista e relativista, um mundo em que cada pessoa quer dizer como quer ser, até mesmo como quer ser católico. Então, essa pessoa toma a palavra de Deus, mas não é aquela palavra de Deus que deve ser igual para todos. Essa pessoa quer dizer o que aceita e o que não aceita, como se fosse um supermercado de religião, onde o 'cliente' escolhe o que quer".

Ecos superficiais dessa conversa se fizeram ouvir na semana passada na flamante troca de farpas sobre a religiosidade do presidente Lula que envolveu os arcebispos de São Paulo, Cláudio Hummes, e do Rio, Eusébio Scheid. Lula não é "suficientemente católico", disse Scheid (absolutista?); é "católico a seu modo", disse Hummes (relativista?); é "um homem de muita fé", não tem mais tanto tempo de freqüentar a igreja, mas, quando vai, comunga, disse o próprio Lula.

Foi apenas um incidente político-religioso menor, de dimensão nanométrica se comparado com a gravidade com que os principais teólogos católicos --alguns deles estarão presentes no conclave que se inicia no dia 18-- encaram a discussão sobre como administrar os temas espirituais num mundo que julgam cada vez mais individualista e materialista.

A tese do hipermercado de religiões supõe a revalorização do elemento místico à religiosidade das pessoas, borrando o distanciamento clássico entre o humano e o divino. É forçoso concluir que esse "estabelecimento comercial" a um só tempo material e espiritual não tem sido abastecido apenas por fenômenos como o das seitas neopentecostais no Brasil. Também têm lá o seu "market-share" alguns movimentos católicos que foram valorizados durante o papado de João Paulo 2°, caso dos carismáticos, mas não só deles.

Tampouco se trata de acontecimento restrito ao estrato dos fiéis, aos leigos. Esse processo tem sido acompanhado, do lado da doutrina emergente na cúpula da igreja, da revalorização de teólogos místicos do passado --caso de Bernardo de Claraval (1090-1153, santo desde 1174), o Doctor melifluus do medievo católico-- e da figura de Maria, que é a mãe de todo misticismo cristão, pois no seu ventre o divino e o humano se tornaram um só.

Aos teólogos o que dos teólogos é. Que se entendam ou se desentendam sobre isso à vontade. De minha parte, queria mesmo é ter um amigo padre romano para descolar um computador novo na lojinha do Vaticano, que este aqui já deu o que tinha que dar.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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