Pensata

Vinicius Mota

17/04/2005

Racismo via satélite

Toda a situação em torno da prisão do zagueiro argentino Leandro Desábato no final do jogo de quarta-feira passada entre São Paulo e Quilmes foi inusitada. O fato de a difusão do "flagrante" e da indignação ter-se dado por meio da voz do locutor da TV Globo Galvão Bueno; o fato de a polícia ter respondido ao chamamento e ter feito a detenção em pleno gramado do Morumbi, de modo espetacular; o fato de o ofendido Grafite ter aceito denunciar formalmente o jogador rival à polícia; o fato de um jogador estrangeiro terminar passando duas noites preso numa delegacia paulistana; o fato de o cônsul argentino ter reclamado da "lei muito dura" do Brasil.

Temo ilações peremptórias a respeito de se o episódio foi bom ou foi ruim, se foi exemplar ou apenas mais um grande espetáculo periódico sem maiores conseqüências. O racismo --e racista foi, sob todos os aspectos, o desabafo de Desábato ante Grafite, diferentemente do que afirmou o colunista Tostão na Folha-- é fenômeno arraigado.

As frases chulas usadas pelo zagueiro argentino são brotos espontâneos de uma lavoura cultivada por gerações a fio no convívio íntimo das crianças com os mais velhos, das crianças com outras crianças, que crescem ouvindo frases racistas, sexistas e xenófobas no ambiente doméstico e nas rodas de amizade e incorporando, gradualmente, suavemente, esse universo mental a seu repertório pessoal.

É função da norma democrática fustigar esses hábitos fascistas sempre que suas manifestações aparecem. A repressão continuada, a garantia de punição, é o grande inibidor da ocorrência de outras manifestações racistas. Mesmo que, no íntimo, alguém possa chegar aos píncaros da discriminação contra certo grupo social, terá consideráveis obstáculos, psíquicos e legais, para transformar esse sentimento em manifestação pública. E isso basta para a civilização.

Daí o potencial positivo do caso Grafite, no que a própria espetacularização pode em tese ajudar, se contribuir para tornar esse episódio de fato exemplar. Mas, antes de fecharmos esse diagnóstico, esperemos, ansiosos, pela repetição de muitos casos assim no cotidiano dos cidadãos, fora do mundo mágico da TV.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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