Pensata

Vinicius Mota

21/11/2004

Guia prático: o que fazer com o corpo de Arafat

Ao assistir à catártica cerimônia do enterro de Iasser Arafat, há pouco mais de uma semana, esperava pelo momento em que a multidão abrisse o caixão e de lá retirasse o cadáver do líder. Mas a tradição muçulmana de manter contato visual com o corpo até o momento em que é depositado na cova foi quebrada naquela tarde inesquecível em Ramallah. Quem se lembra do espetáculo ainda mais alucinante que foi o funeral do aiatolá Khomeini, em Teerã, já se vão 15 anos, notou a diferença.

Arafat morto não seguiu à tumba da Muqata dentro de um caixão por distração dos que elaboraram o ritual. Deixou de ser carregado na tradicional maca mortuária muçulmana, corpo embalado por lençol e cabeça à mostra, porque os palestinos querem remover seus despojos de lá num futuro heróico. O objetivo é o de, no dia da conquista, enterrá-los na mesquita sagrada de Al Aqsa, em Jerusalém, então convertida na capital da Palestina. Entende-se, portanto, a funcionalidade do caixão.

Arafat morto, arrisco-me a dizer, aumentou seu valor político em relação ao que detinha nos anos finais de vida: humilhantemente confinado por Israel, desacreditado como mediador político no seio do próprio movimento nacional que ajudou a construir, desgastado pela tacha da corrupção e da incompetência administrativa.

A lembrança de que jaz em lugar conhecido o corpo do mártir à espera de sepultamento justo, impossibilitado pelo despotismo de Israel ocupante, é um poderoso e duradouro motivador espiritual para os palestinos. Daí o denodo da liderança palestina ao preservar a integridade de seus restos mortais.




Pensando bem, desconhecer o paradeiro do corpo da liderança mitológica pode ser ainda mais perigoso. Ao golpearem Juan Domingo Perón, em 1955, os generais da "Revolución Libertadora" argentina ficaram com um problema nas mãos. Como lidar com o corpo embalsamado de Eva Perón (que morrera de câncer em 1952), o mais poderoso e praticamente indelével signo vivo (apesar de morto, é paradoxal mesmo) do peronismo, propaganda permanente de grande potencial mobilizador das massas nostálgicas do regime defenestrado? Acabaram dando um sumiço no cadáver.

Evita morta e embalsamada, em novembro de 55, foi seqüestrada da sede da Confederação Geral do Trabalho da Argentina. Acabou sendo enterrada, clandestinamente, num cemitério em Milão, na Itália.

Mas não se brinca com essas coisas impunemente. O general Pedro Eugenio Aramburu, que presidia o país à época do seqüestro do cadáver de Evita, que o diga. Uma década e meia depois de sumir com Evita embalsamada, já fora da Presidência, o oficial foi seqüestrado de dentro de sua casa, em pleno centro de Buenos Aires, e levado para um cativeiro por um comando de jovens peronistas radicais. Era a entrada triunfal dos montoneros na vida política argentina. Exigiram que o general dissesse onde estava o corpo roubado de Evita.

Orgulhoso como um general de filme americano que cai nas mãos dos nazistas, recusou-se. Os montoneros naqueles dias devem ter tremido nas bases. Mas foram adiante, leram a sentença do que teria sido o julgamento do general e passaram fogo nele.

O paradeiro do corpo de Evita ficou conhecido em 1972. Retornou ao país em 1974 e pode ser visitado no concorridíssimo cemitério da Recoleta, de onde a ex-garota do rádio argentina, bem mais inofensiva que antigamente, dizem, faz lá seus milagres.




Gostaria de ter terminado este artigo inaugural com sábios conselhos, baseados nas lições da história, sobre como um governante deve lidar com o cadáver do adversário. Afinal de contas, Maquiavel fez esse tipo de coisa e se deu bem, está certo que depois de morto. Agiu corretamente o governo israelense ao impedir o sepultamento de Arafat em Jerusalém? Pelo menos não foram tão radicais quanto os libertadores argentinos.

Quer dizer que Sharon pode ficar tranqüilo que não corre o mesmo risco de Aramburu? Eu não recomendaria que fosse fazer um passeio solo em Beach, na faixa de Gaza. E os libertadores? Teriam evitado o banho de sangue que foram os anos 70 na história argentina tivessem deixado Evita quieta na sede da CGT? Ou teriam abreviado a volta de Perón e o inevitável e duro acerto de contas?

A conclusão é que falhei miseravelmente na missão. Pelo menos resolvi dar minha contribuição pessoal para não propagar esse tipo de problema para a posteridade. Apesar de não ser líder de nada e não ter perspetiva de liderar nem coral gospel nos próximos anos, não vou correr riscos. Decidi que serei cremado quando morrer.
Mas para onde vão as mihas cinzas?




Indicação

Em "La Pasión y la Excepción" (ed. Siglo Veintiuno), Beatriz Sarlo, uma das mais importantes críticas e ensaístas da Argentina, analisa com extrema felicidade essas passagens cruciais da história argentina que foram Evita e o seqüestro de Aramburu. A permear tudo, um perturbador Borges. Vale muito a leitura. Ainda não há tradução para o português, mas não é tão difícil assim compreender a língua de nossos vizinhos.


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    Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

    E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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