Pensata

Vinicius Mota

24/04/2005

A Igreja Católica fora do mundo

Se seguir o que pregava Ratzinger, retirar-se do mundo em busca de um catolicismo autêntico ainda que para menos pessoas, Bento 16 será o testemunho sincero, talvez o mais bem acabado que os católicos tenham produzido em séculos, de uma derrota histórica. A Igreja Católica jamais se recuperou do golpe desferido por Lutero no começo do século 16. Foi um revés definitivo, que impiedosamente dragou, num espaço de tempo incrivelmente curto para a temporalidade das religiões, a um só tempo a força espiritual e o poder mundano do catolicismo romano.

Os papas ficaram menos poderosos, já não circulam na elite governante mundial nem influenciam como outrora na tomada das principais decisões. A pressão que se ouve para que a igreja aceite demandas como o direito ao aborto, ao uso de anticoncepcionais, ao relacionamento homossexual, ao divórcio, à pesquisa com células-tronco passa freqüentemente a idéia de que o apoio da Igreja Católica a esses temas seria essencial para que deslanchassem. Quimera. A realidade é exatamente o oposto. A igreja bem que gostaria de ter algo parecido com um "poder de veto" nessas questões. Passa longe de ter.

O aborto é uma prática legalizada em muitos países católicos importantes. Onde não é legalizado, é corriqueiro, como no Brasil católico. O reconhecimento da união homossexual se expande pelo mundo católico (a Espanha, onde mais de 90% se declaram católicos, segue em passo firme nessa direção). A regra é que os países tenham políticas públicas agressivas de distribuição de preservativos e de outras técnicas anticoncepcionais.

O maior veto à pesquisa com células embrionárias nada tem que ver com o Vaticano, mas com o fundamentalismo alucinado, aliás de matriz reformista (batista), da era Bush. Fora dos EUA, em países majoritariamente católicos como a Itália e o Brasil, leis e pesquisas sobre células embrionárias avançam. Abundantes sondagens, no mundo todo, mostram que a grande maioria das pessoas que se dizem católicas pratica o que a doutrina do Vaticano condena.

Além disso, os eixos da riqueza material e do desenvolvimento econômico estão alhures: na América protestante e na Ásia das grandes religiões mágicas e do comunismo agnóstico.

O primeiro caso não parece ter sido mera coincidência. Lutero, Calvino e as seitas batistas, para usar uma descrição histórico-conceitual clássica do sociólogo alemão Max Weber (1864-1920), completaram a tarefa de privar a religião da magia; de retirar, em definitivo, Deus do mundo; de conceder ao indivíduo, e só a ele, a faculdade de verificar, pelo trabalho metódico, racional, que submete a natureza, medido usualmente pelo acúmulo de riquezas, se foi abençoado pelo Deus das razões insondáveis, se é um predestinado.

Venceu Lutero, mas foi vencido também. O individualismo ético --afinal, até no protestantismo ascético o trabalho do indivíduo no mundo tem um sentido último que é, ainda, religioso-- pregado pelas seitas protestantes mais radicais despojou-se, com o passar dos séculos, de seu caráter religioso para tornar-se individualismo "tout court", algo que não tem mais valor, apenas finalidade.

Talvez por isso Bento 16 queira, como muitos interpretam, retirar-se do mundo como o fez, diz a lenda, são Bento nos séculos 5º e 6º. O mundo está caótico, relativista, individualista, inclinado à perdição, carente de sentido --são argumentos dos teólogos católicos que lemos e ouvimos à farta nos dias que passaram-- e por isso necessita de um pastor que se afaste dele espiritualmente e intelectualmente para certificar-se do caminho verdadeiro e liderar nem que seja um pequeno número de ovelhas por essa difícil trilha, mas a única que conduz à salvação.

É, definitivamente, a ladainha dos derrotados. É comum atribuirmos caos e perdição àquilo que, por estarmos alijados, não compreendemos. O outro é caótico; o outro está perdido para Deus. A igreja, a sua cúpula principalmente, já não compreende o mundo hegemônico, este em que vivemos cotidianamente. E não o compreende porque foi colocada na periferia desse universo de referências e de poder que conduz a vida das pessoas, dessa racionalidade radicalmente utilitária (mas por que necessariamente ruim? por que necessariamente caótica?), do democratismo ocidental. Retirar-se intelectualmente e doutrinariamente desse mundo que deixou de ser o seu é, portanto, atitude sincera.

Bento 16, num exercício radical de sinceridade, pode tornar-se o papa a transmitir a mensagem de que a Igreja Católica de fato abandonou sua pretensão de universalidade e atua, não é de hoje, como uma autêntica e bem organizada seita, feita não para todos mas apenas para os fiéis "legítimos" e destinada, sobretudo, à reprodução de si mesma como máquina teológico-burocrática.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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