Pensata

Vinicius Mota

01/05/2005

O espetáculo dos juros

Que me perdoe a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, que acaba de lançar uma cartilha elencando termos pejorativos a serem evitados no trato civilizado das pessoas, mas a semana que passou foi de autêntica e contínua palhaçada com a questão dos juros no Brasil.

Palhaçada de péssimo nível, diga-se, para a preservação dos profissionais que competentemente suam a camisa para arrancar gargalhadas das crianças.

Tudo começou com uma frase infeliz (das mais infelizes que pronunciou até hoje) do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na segunda-feira.

Lula, desta feita, criou a parábola de um grupo de amigos reunidos num bar para tomar umas e outras que vivem dirigindo impropérios --certamente também condenados na cartilha dos termos incivilizados do governo-- aos bancos pelos juros cobrados. Aí veio a comichão fatal na língua presidencial, que não foi contida: "Mas, no dia seguinte, ele [o indignado do boteco] é incapaz de levantar o traseiro de uma cadeira e ir ao banco ou ao computador fazer a transferência da sua conta para um banco mais barato".

A indignação, como era de prever, foi geral. Irada, como dizem os adolescentes. E certamente, pobre cartilha, ultrapassou em muitos decibéis o que reza o politicamente correto.

Todos os que têm conta em banco, que recebem salário pelo banco, que já tiveram de lidar com gerentes e driblar táticas as mais sofisticadas de subtração de contas, têm noção bastante razoável de que o mercado bancário no Brasil está longe da "concorrência perfeita", de que transferências bancárias são taxadas, de que há prazos de maturação de empréstimos que dificultam a migração, de que os bancos têm acesso a dados para não emprestar dinheiro barato a quem está pendurado em outra instituição, de que a taxa de juros é apenas um componente de tudo o que banco e governo tascam da renda do devedor, de que a taxa num banco pode estar menor numa semana e saltar, sem mais, para a maior do mercado na semana seguinte e de que não dá para mudar de banco semanalmente.

E todos os que acompanham o noticiário também sabem que na base dos juros altos cobrados do cliente bancário no Brasil está o juro que o próprio governo Lula paga --as taxas reais mais altas do planeta Terra--; o emaranhado de impostos e taxas que incidem sobre empréstimos e que seguem para o governo; e os altíssimos lucros dos bancos com empréstimos --subtração da taxa que cobram dos devedores (já deduzidos impostos, provisão para inadimplência e custos administrativos) da que pagam a seus credores--, o que uma regulação bancária mais eficiente pelo BC de Lula poderia ajudar a reduzir.




Mas o espetáculo prosseguiu, com novos atores em cena (reluto a dizer "no picadeiro", em respeito à profissão novamente e à cartilha dos direitos humanos). Na quarta-feira, o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, decidiu criar uma comissão para estudar a questão dos juros no Brasil. Estudar é sempre bom. Dignifica o ser humano. Melhora a qualidade das decisões dos políticos. Mas o problema foi a intenção declarada por Cavalcanti de "inclusive, se possível for, retirar do Copom [Comitê de Política Monetária do Banco Central] a competência de, isoladamente, decidir sobre o aumento da taxa de juros".

Se o BC deixar de decidir, isoladamente, sobre os juros básicos, o que fará? Toda última quarta-feira do mês analisará questões como o pugilato entre os corintianos Tévez e Marquinhos? Ou terá de instalar mais sete cadeiras na reunião para acomodar os integrantes da douta comissão dos juros dos deputados (com equilibrada representação regional e partidária) e seus pedidos de "aparte" e "pela ordem, sr. presidente"?




Após o intervalo, veio mais. O ministro Palocci, segundo consta, manteve conversas reservadas no governo dizendo que é preferível aumentar mais os juros agora a ser obrigado a tomar essa medida no ano que vem, quando a reeleição de Lula estará em jogo.

É a adaptação de uma história que corre há algum tempo, segundo a qual o governo controla a economia para fazê-la crescer forte em 2006 e não correr riscos eleitorais e que, para atingir esse objetivo, segura o crescimento neste ano.

Alguém, tendo assistido à década de solavancos econômicos pelos quais o Brasil passou, acredita mesmo que a equipe econômica tem o condão de conduzir uma economia cada vez mais aberta, dinâmica e internacionalizada a seu bel-prazer, como os planejadores soviéticos do passado?

Note o leitor que o Brasil aumenta os juros com o dólar despencando a quase R$ 2,50, o que ajuda sobremaneira na contenção dos preços internos. O que fará quando --e há chances de que isso comece a ocorrer no ano que vem-- a moeda americana subir, pressionando a inflação para cima? Além disso, basta recordar 2002 para saber que ano eleitoral é, em regra, turbulento para as finanças. Os investidores externos, em manada, tendem a retirar-se do país durante um período, até que a transição política esteja consolidada.




O final veio num tom menor, talvez porque ninguém agüentasse mais tanta improvisação sobre os juros. Mas, ainda sim, é digno de registro neste nosso roteiro.

Na sexta-feira, na primeira entrevista coletiva do mandato, Lula reconheceu que seu governo pode ter errado ao "não ter feito com que os juros não sejam o único padrão de controle da inflação".

Humilde demais foi o presidente. Seu governo implementou, e com garra, uma política, paralela aos juros, bastante efetiva de controle da inflação. Levou ao recorde histórico o superávit primário, a economia que faz o governo para pagar juros.

Em março, todo o setor público cobrou R$ 12,3 bilhões em impostos, mas não transformou essa quantia em gasto público corrente. Assim, Lula ajuda a conter o consumo, o emprego e a inflação e, de quebra, transfere renda para os credores da dívida pública, os quais remunera --e isso parece um círculo vicioso, um espetáculo que sempre recomeça-- com os maiores juros reais do planeta.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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