Pensata

Vinicius Mota

15/05/2005

Traídos pelo salmão

Os germes estão por toda parte. O "Fantástico", da TV Globo, mais uma vez captou a neurose da moda. Instituiu um quadro chamado "O caçador de bactérias", ou algo assim, em que um cientista, creio que biólogo, persegue os micróbios onde quer que estejam: na tábua de cortar carne, na esponja de lavar louça, no pastel de bacalhau da feira livre. Fez-me lembrar de uma reportagem mais antiga do mesmo programa, em que uma câmera especial mostrava a enxurrada de saliva e tudo o que há de ruim que exalamos de um simples sussurro até um espirro --verdadeiras cataratas despejadas no ambiente e na face do infeliz que estiver à frente.

Parece ter voltado à superfície uma grande neurastenia coletiva que orbita em torno do que podemos comer. Tudo dentro da temática geral do nojo, da paúra do contato e do contágio, um "topos" de resto ancestral.

Tendo vindo logo depois do caldo de cana com mal de Chagas, a história do salmão contaminado e a cruzada contra os sushimen deu alento a esse impulso.

É interessante notar como comer comida crua, de um hábito alimentar associado desde priscas eras ao barbarismo, passou à crista do alimentarmente correto. Não sei como associar essas coisas diretamente, mas desconfio que a emergência da onda rosa do sashimi tenha alguma relação com os florais de Bach, a redescoberta dos gnomos e a cabala pop, à qual Madonna aderiu. É como se as pessoas que comem peixe cru ou só se alimentam de ervas estivessem mais perto da felicidade.

Há uma verdadeira aversão em curso às carnes "vermelhas" (mas o salmão é bem vermelho, não?), às gorduras e aos açúcares. Amigos meus lutam desde o nascimento dos filhos e durante anos para evitar que seus descendentes ingiram açúcar. As escolas da moda em São Paulo patrulham diariamente as lancheiras das crianças à busca de contravenção alimentar. No colégio das minhas filhas houve há pouco a "semana do lanche saudável".

Se o caldo de cana foi um incidente associado a um hábito popular, ancestral, de moer o caule barato que sempre abundou nestas terras e tomar-lhe o sumo extremamente doce, o caso do salmão suspeito foi diferente. Atingiu diretamente um comportamento em ascensão na classe média mais "in" do Brasil. O salmão é chique, de paladar quase neutro quando ingerido cru, vem de fora do país, exótico e inacessível para a maioria da população brasileira.

É interessante. O sanitarismo típico do passado --o mesmo que descobriu os micróbios e inventou as primeiras tecnologias de esterilização-- vitimou um hábito moderníssimo de gente que utiliza a dieta na busca da purificação e da diferenciação social.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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