Pensata

Vinicius Mota

21/05/2005

Déficit de iniciativa

O governo gasta muito. O governo gasta muito e gasta mal. Porque o governo não contém sua gastança, os juros são altos. Porque o governo tem incontinência com dinheiro, a inflação não tem o controle desejado.

Porque o governo se mete a regular parcela do crédito e não libera de vez as transações com moeda estrangeira na economia, os juros são altos, a política monetária não funciona e o dólar está desvalorizado do jeito que está.

À exceção desta última ilação, que li na semana que passou em uma coluna especializada e que, confesso, está além da minha capacidade de compreensão, todas as outras são frases feitas que rondam o debate público há mais de século e que, vez ou outra, ressurgem com força.

Agora voltam ao proscênio no Brasil, misturadas a um discurso geral oposicionista, parte legítima e saudável do jogo democrático, que se aproveita de um momento de impressionante baque do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Do ponto de vista das relações de causa e efeito que essas frases, à exceção da última, sugerem, elas realmente têm apelo. Se uma entidade qualquer gasta além do limite de suas receitas e se acelera esses dispêndios sem controlá-los, ficará na melhor das hipóteses cada vez mais endividada, os juros exigidos sobre sua dívida tendem a aumentar e suas condições de pagamento, a piorar.

Se essa entidade se chama governo, gastar além da arrecadação, seja transformando em despesa corrente a poupança que o financia através dos títulos de dívida seja emitindo dinheiro para tanto, a resultante é um estímulo ao consumo que pesa a favor da aceleração da inflação.

Apesar de as hipóteses que estão por trás dos slogans citados no primeiro parágrafo desta coluna, à exceção do último, serem genericamente válidas (são derivadas de identidades macroeconômicas aceitas), elas sempre precisam ser testadas contra a realidade para ganharem poder de explicar o que está ocorrendo.

Surge o primeiro problema para validá-las quando se nota que a participação dos gastos do governo no PIB vem decaindo há muitos anos.

No último trimestre de 2004, o patamar de tudo o que se produziu no país estava 43,5% acima da média registrada em 1990; já o nível de consumo do governo era apenas 26% superior em relação ao mesmo parâmetro. Os números são do IBGE.

No período em que Lula está na Presidência, a moderação relativa dos gastos do setor público continuou. Do primeiro quarto de 2003 ao último de 2004, o PIB cresceu à média trimestral de 1%, enquanto o consumo de todas as esferas de governo ascendeu em ritmo bem mais moderado: 0,2%.

Já o consumo privado, o do conjunto das famílias brasileiras, cresceu praticamente na mesma velocidade que o PIB nesse período.

Esse é um resultado esperado da política de superávits fiscais --a diferença entre o que o setor público arrecada e o que gasta em suas ações típicas, como pagamento de funcionários, manutenção de prédios, contratação de serviços etc.-- progressivos adotada pelo governo brasileiro desde 1998. (Antes desse ano, também é inexato dizer que houve gastança do setor público, pois a regra, de 1990 até 1998, foram resultados fiscais primários equilibrados.)

Ou seja, do ponto de vista da demanda agregada, ou do nível geral de consumo no Brasil, o governo tem agido com um vetor negativo e, portanto, contribuído para evitar o aumento da inflação.

O problema é quando se olha para a contraface financeira dessa equação. O nível de endividamento do setor público não cedeu no ritmo que seria de esperar. Estava em torno de 51% do PIB em março passado, embora talvez esse não seja o melhor indicador para avaliar as condições de financiamento do governo, pois é uma complexa e volátil avaliação de estoques sujeita, por exemplo, ao nível do dólar.

Mas é fato que a dívida pública brasileira custa muito caro e ficou mais cara ainda com a política de aumento dos juros básicos iniciada pelo Banco Central em meados do ano passado. Em agosto de 2004, o setor público transferiu ao conjunto de detentores da sua dívida o equivalente a 6,7% do PIB; em março de 2005, essa cifra aumentou para 8,2% do PIB.

Além disso, algo que talvez preocupe mais é que o prazo médio de vencimento da dívida pública vem-se encurtando monotonamente ao longo dos meses. E aí não importa se os juros aumentaram ou diminuíram, se o país cresceu ou decresceu, se choveu ou fez sol. Em janeiro de 2003, o tempo médio para que todo o estoque de dívida pública mobiliária federal girasse era de 34,2 meses. No mês passado, esse prazo médio já havia recuado 6 meses, para 28,2. Isso quer dizer que, em pouco mais de dois anos, algo como R$ 1 trilhão em haveres do Estado, mais os juros e prêmios que esses papéis embutem, tem de ser ou liqüidado ou renegociado.

Ainda timidamente, surge uma proposta de aumentar mais uma vez o superávit primário do setor público de modo a atingir algo próximo a um equilíbrio nominal (ou seja, que o montante arrecadado pelo governo possa cobrir tanto suas despesas típicas quanto suas obrigações financeiras), mas, diferentemente do que ocorre desde 1998, atrelada necessariamente à condição firme de baixar consideravelmente os juros básicos --hoje em mais de 13% ao ano em valores reais, praticamente o dobro da taxa praticada pelo país que, atrás do Brasil, ocupa a segunda posição no ranking mundial dos juros altos.

A diminuição dos juros facilitaria o cumprimento da meta nominal, restando ao governo aumentar um pouco mais o aperto nas suas despesas correntes, pois ninguém mais aceitará incremento de carga tributária. A queda dos juros seria também facilitada pelo momento de excessiva liquidez em dólar --o que inibe os efeitos inflacionários-- e teria a vantagem de combater os efeitos adversos da valorização do real para a competitividade internacional da indústria aqui instalada. Por diminuir a taxa para colocar títulos de curto prazo no mercado em ambiente de fartura de dólares, facilitaria a aquisição de reservas internacionais pelo BC.

A baixa dos juros e o combate à valorização cambial também estimulariam a conversão da montanha de lucros recorde acumulada pelas maiores empresas brasileiras até o primeiro trimestre deste ano em investimentos na ampliação da capacidade produtiva. Também dariam ao setor público um horizonte, em médio prazo, de melhora de sua capacidade financeira --hipótese que, mantidos os atuais parâmetros de gestão da política econômica, está comprometida.

Tudo isso, argumentam os economistas e analistas que de modo assistemático lançam esse esboço de proposta ao mercado de idéias, manipulando apenas instrumentos ortodoxos de política econômica: a taxa de juros de curto prazo e o nível de gastos do governo. Sem planos mirabolantes, sem calote.

Porém os responsáveis pelas decisões políticas e econômicas no governo Lula estão entorpecidos na mediocridade inercial do receituário que aplicam como se fosse mandamento divino e engalfinhados em batalhas e derrotas intestinas no pior mundo do congressismo de Brasília. Não têm tempo nem vontade de avaliar seriamente maneiras de sair da encalacrada financeira em que o país e, especificamente, o Estado brasileiro estão metidos.

Afinal de contas, o Brasil não corre o risco quebrar como a Argentina quebrou, deve crescer um pouquinho que seja até 2006 e Lula mantém boas chances de reeleger-se no ano que vem. Isso parece que lhes basta.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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