Pensata

Vinicius Mota

05/06/2005

O dia em que o destino de Nixon foi selado

A história não é feita apenas de lances mirabolantes, de tramas urdidas ao longo de meses, como a invasão aliada da Normandia, em junho de 1944, ou o ataque simultâneo a Nova York e Washington, minuciosamente planejado pela rede do terrorista Osama bin Laden. Ela é produzida também pelo acaso, no que por vezes se aproxima da estrutura de composição das tragédias clássicas.

Foi por acaso que um jovem "courier" --aqui para nós, um office boy de luxo-- da Marinha dos Estados Unidos conheceu um já experiente e graduado oficial do FBI, a polícia federal americana, em 1970. O local desse encontro fortuito não poderia ser mais irônico, ou, em outra leitura, densamente carregado do espírito da tragédia: a Casa Branca.

Tendo seu curso de graduação na conservadora Universidade Yale sido financiado pela Marinha, Robert Upshur Woodward teve de cumprir quatro anos de serviço naquela Arma após concluir seu curso. Não fosse o estouro da Guerra do Vietnã, não teria sido obrigado a estender seu estágio por mais um ano e não estaria na ala oeste da Casa Branca naquela fatídica noite. Tampouco teria tido tempo de conversar com seu interlocutor e lançar as bases de uma incipiente amizade se os office boys americanos tivessem melhor fado que os brasileiros e não fossem obrigados a esperar horas sentados numa sala por um carimbo e uma assinatura de um burocrata atestando ter recebido a encomenda.

Foi assim que um desorientado Bob Woodward, aos 27 anos, conheceu um solícito W. Mark Felt, com mais que o dobro de sua idade. Felt era o chefe da seção de inspeção do FBI, sob a batuta do mítico J. Edgar Hoover, que dirigiu a agência de 1924 até morrer, em 1972. Ambos, Bob e Mark, numa sala de espera, fazendo o que se espera numa sala de espera, esperando, começaram a bater papo. Woodward, como todo jovem desorientado a pouco tempo de ter de transitar de anos de tutela acadêmica e militar para um desconhecido mercado de trabalho, procurava contatos com pessoas que o pudessem ajudar na escolha de uma direção para a carreira.

Da conversa inicial surgiram coincidências entre os dois. Bob cursava um par de disciplinas na Universidade George Washington, na capital, a instituição que Mark freqüentara nos anos 30. Bob prestava assessoria voluntária ao republicano John Erlenborn, deputado federal pelo distrito em que o primeiro fora criado, em Illinois. Mark também havia trabalhado de assessor de um representante, este no Senado, de seu Estado natal (Idaho) enquanto estudava direito na George Washington.

Num indício precoce de faro para o jornalismo, carreira que apenas começaria a abraçar mais tarde naquele ano, além de conselhos sobre como encontrar um bom posto de trabalho, Woodward pediu um número de telefone a Felt. Em sinal de apreço pelo seu jovem interlocutor, o agente federal lhe deu o número que chamava diretamente o seu escritório no FBI.

A seqüência dessa história é mais conhecida. Bob tornou-se repórter do "Washington Post"; Felt tornou-se o principal dirigente do FBI abaixo do diretor da agência. E aquele número de telefone ajudou bastante a carreira daquele jovem desorientado. Bob, com seu colega Carl Bernstein, desvelou o escândalo Watergate, que irrompeu cerca de dois anos depois daquele encontro na Casa Branca. E W. Mark Felt tornou-se "Garganta Profunda" por 33 anos, até que um artigo da revista de variedades "Vanity Fair" da semana passada revelasse a sua identidade.

E tudo foi costurado pelo acaso em plena Casa Branca, nas barbas de Richard Nixon, quando o republicano nem completara a metade de seu primeiro mandato. Naquela noite de 1970 foi selado o destino do presidente: seria reeleito em 1972, numa vitória acachapante (60% dos votos; 49 de 50 Estados conquistados), mas obrigado a um humilhante ato de renúncia, em 9 de agosto de 1974. Um ciclo trágico perfeito. Para Nixon, é claro.




O relato de Bob Woodward contando como começou e evoluiu sua relação com W. Mark Felt pode ser lido no site do "Washington Post". É necessário ser cadastrado no site do jornal, procedimento gratuito.
www.washingtonpost.com
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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