Pensata

Vinicius Mota

12/06/2005

La Paz, Buenos Aires, Brasília

Além de denominarem as sedes administrativas do poder na Bolívia, na Argentina e no Brasil, há um contraste curioso de significados entre os nomes La Paz e Buenos Aires, de um lado, e Brasília, do outro.

La Paz ("a paz") e Buenos Aires ("bons ares") trazem logo à mente as idéias da tranqüilidade, da harmonia, do bem-estar. Já o significado de Brasília não é compreendido assim de chofre; é um derivado do nome do país, que por sua vez provém de uma madeira que tem a propriedade de tingir de rubro, de avermelhar, e que evoca termos quentes e conflitivos como brasa (o carvão incandescente, a dor ardente) e abrasar (incendiar, arrasar, devastar). Nesse aspecto, Brasília está para La Paz/Buenos Aires assim como a atividade está para o repouso, ou o tumulto está para a tranqüilidade.

Mas o contraste logo se transforma em paradoxo quando agregadas mais informações sobre essas cidades. A abrasiva Brasília está isolada no meio do cerrado, foi concebida urbanística e arquitetonicamente para transmitir a harmonia sobrepujante e estática do poder, está afastada dos centros urbanos mais populosos, violentos e instáveis do país. Já as aprazíveis La Paz e Buenos Aires estão literalmente cercadas pelo conflito social, pelo qual são constantemente devassadas. Das periferias de La Paz e Buenos Aires partem dois dos principais vetores da mudança política por que Bolívia e Argentina têm passado em sua história mais recente.

Comparada à que ocorreu na Argentina em 2001 e à que está acontecendo na Bolívia, a crise que atualmente se abate sobre o governo brasileiro é completamente desprovida do elemento asfalto. Basta procurar por organizações populares nas ruas da capital do Brasil liderando protestos de massa e promovendo bloqueios, dispostas a enfrentar barreiras policiais. Não há.

A crise do governo Lula, que pode custar-lhe a reeleição senão, especulam alguns, o próprio mandato, dá-se no circuito Executivo-Parlamento-opinião pública. É um acontecimento de palácios, plenários e gabinetes transmitido ao público por jornais, rádios, internet, mensagens SMS e TVs. Nas largas avenidas e nos imensos espaços públicos de Brasília, porém, a rotina é a mesma de sempre.

Na Argentina, uma massa popular empobrecida, desempregada e desassistida pelo Estado --num processo de rápida deterioração de condições de vida talvez sem paralelo na história da América do Sul--, esparsamente articulada por organizações como as dos piqueteiros, marchou das periferias populosas ao centro de Buenos Aires para impor um basta ao governo diretamente associado ao regime responsável por aquela degradação.

Na Bolívia, as populações indígenas que saíram do campo e nos últimos anos superpovoaram a paupérrima El Alto fizeram do bloqueio e do protesto na contígua La Paz uma rotina. Seu objetivo é o de partilhar as fontes mais dinâmicas da renda, cada vez mais relacionadas à exploração do gás, tradicionalmente apropriada pela elite branca do país em associação com grandes conglomerados multinacionais, entre eles a Petrobras.

A crise de Brasília não diz respeito a assunto dessa natureza. A corrupção pode diminuir a zero e os cargos de indicação partidária no Executivo podem até acabar que o modo como no Brasil habitualmente se dividem a renda e a riqueza restará intacto. Trata-se de fenômenos --a corrupção, de um lado, e a maneira como uma sociedade inteira distribui seus bônus, de outro-- de escalas muito diferentes, incomparáveis. Além disso, não há manifestações de massa, estimuladas pelo escândalo que atinge em cheio o governo Lula, exigindo, além do habitual impeachment, uma nova Constituinte, ou mais taxação da renda e do patrimônio dos mais ricos, ou uma reforma profunda com aumento substancial do gasto do governo no ensino público, por exemplo.

Aqui, diferentemente do caso argentino e do boliviano, as instituições não correm risco. A partilha que foi feita, em sucessivos pactos nos quais as pressões populares não tiveram influência decisiva, está bastante bem assentada. Em um desses pactos, a capital foi retirada dos centros populosos. Em outro, instaurou-se um colchão assistencial de dimensão razoável, capitaneado pelos benefícios instituídos pela Constituição de 1988 --efetivados pela Lei Orgânica de Assistência Social-- e adensado ao longo dos anos com outros programas de transferência de renda, o que ajuda a administrar a taxa de pobreza. Dispositivos constitucionais (estes oriundos de emendas posteriores) asseguram que os recursos destinados a saúde e educação básica não diminuam. Outras migalhas apenas impedem um surto maior de concentração de renda, patrimônio e oportunidades.

A resultante: o Brasil é vice-campeão mundial de desigualdade, mas o povo está calmo ou ao menos não descarrega a sua insatisfação politicamente. E as ruas de Brasília estão tranqüilas. Enquanto isso, La Paz arde em brasa.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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