Pensata

Vinicius Mota

03/07/2005

A economia é o último front de Lula

Pelo andar desgovernado da carruagem, a administração de Luiz Inácio Lula da Silva perdeu definitivamente o controle sobre a batalha política. A quantidade de diques rompidos é muito superior à capacidade do governo de consertá-los.

Para cada equipe de emergência que se desloca para tapar um buraco, dezenas de outros vazamentos aparecem. E assim será a toada até outubro de 2006, a não ser que surja no horizonte um fato extraordinário --e a favor de Lula.

O único campo de batalha sobre o qual o governo ainda detém um grau razoável de controle é o da economia. Em outros tempos, independentemente de as denúncias atingirem integrantes da equipe econômica, uma crise política de tal monta já teria abalado indicadores financeiros internos e externos do Brasil.

A diferença fundamental entre o passado e o presente não é a por muitos decantada "blindagem" (palavra horrível) de Antonio Palocci Filho. A correção do câmbio a partir de 1999 e mais fortemente desde o segundo semestre de 2002 e o impulso que essa virada exerceu, num ambiente de alto crescimento e de grande liquidez (juros baixos) internacionais, sobre a indústria instalada no Brasil são a explicação básica para o fortalecimento financeiro do país.

Todos os indicadores de solvência externa do Brasil, calcados em maior grau na expansão das exportações, galoparam favoravelmente. A probabilidade de o país ser dragado por uma crise financeira, hoje, é bastante remota.

Por outro lado, esse ciclo de saúde financeira não se traduz, na economia real, num cenário de pujança da produção, do emprego e da renda. Graças à majoração dos juros, iniciada em setembro de 2004, as expectativas de crescimento do PIB neste e no próximo ano caíram para o medíocre patamar de 3% e 3,5%, respectivamente.

O impacto dessa baixa de projeções de crescimento nos investimentos produtivos --isto é, na capacidade futura de produzir e de empregar-- não pode ser medido com exatidão, mas é provável que já venha ocorrendo. Em suma, a economia, se não joga mais lenha na fogueira em que o governo Lula está sendo grelhado, tampouco contribui para uma melhora sensível dessa situação.

Nesse contexto, o deputado federal e ex-ministro da ditadura Delfim Netto (PP-SP), ao que consta, conquista corações e mentes governistas para a implantação de um plano dito liberal (liberal-conservador, eu acrescentaria). Seu objetivo é o de zerar paulatinamente, no espaço de seis anos, o déficit nominal do setor público (a diferença entre tudo o que o Estado arrecada e o que gasta).

Já defendi neste espaço que os formuladores da política econômica de Lula estivessem abertos a debater com os que, como Delfim, propunham a diminuição do déficit nominal do setor público, desde que, e essa era a condição essencial, argumentava eu, na outra ponta houvesse o compromisso firme do Banco Central de baixar substancialmente o patamar da taxa de juros.

Pessoalmente, não estou convencido de que cortar gasto público signifique necessariamente abrir condições para a baixa dos juros. As altas sucessivas do superávit primário desde 1998 não foram acompanhadas de alívio na carga de juros que o setor público transfere ao conjunto dos seus credores, que tem custado todo ano, em média, cerca de 8% do PIB --foram quase R$ 130 bilhões em 2004.

Enxerguei na emergência dessa discussão uma oportunidade para a realização de um pacto entre forças conservadoras e outras mais ao centro para, enfim, tentar incluir o Banco Central numa política que preserve o Tesouro Nacional dos exageros não raro desvairados cometidos pelos diretores do BC na condução da política monetária. O BC não pode ser livre do modo absoluto como hoje é para queimar a economia realizada na política fiscal.

Sinceramente, acho que, agora, toda essa discussão levantada por Delfim está vencida. Foi atropelada pela crise política. Posso estar enganado, mas o governo desperdiça tempo e energia preciosos ao confiar em que um plano como esse pode dar certo quando a maré política virou completamente. A proposta de zerar o déficit nominal num prazo de seis anos precisa, por exemplo, de uma emenda constitucional que desvincule gastos hoje carimbados do Orçamento.

Não vejo chances de um projeto que exige quatro votações, cada uma com a aprovação mínima de 3/5 dos congressistas, passar pelo Parlamento nas atuais condições de temperatura e pressão, com CPIs e comissões de ética instaladas, o público ávido pela purgação da corrupção, o governo incapaz de formar maiorias e na véspera de um ano eleitoral. Parlamentar nenhum que deseja a renovação de seu mandato em 2006 --tampouco o que pretenda concorrer a cargo majoritária-- vai querer se identificar com um corte de gastos que pode atingir áreas como saúde e educação.

O que me parece mais factível, nas atuais circunstâncias, é o governo elaborar uma maneira de apressar o início do ciclo de baixa na taxa de juros e de intensificar o ritmo desse processo. E isso sem deixar de vestir o figurino da política econômica conservadora que implementa desde que Lula assumiu. O superávit primário já está girando em 5% do PIB no acumulado de 12 meses. Anunciar que a meta até o fim deste ano será majorada para 4,75% e que a do ano que vem será de 5%, por exemplo, não é algo difícil.

Se esse anúncio vier associado a um alargamento dos prazos fixados na política de metas para a queda na taxa de inflação (como atingir 4,5% do IPCA num horizonte de 24 meses ou até mais) e de uma postura ligeiramente mais ousada por parte da diretoria do BC, talvez Lula ainda consiga contribuir para reacelerar a atividade econômica em prazo visível, algo de que ninguém vai reclamar e que certamente o ajudará, quanto menos, para melhorar as até agora melancólicas perspectivas para o último ano de seu mandato.

É bem provável que Lula não faça nada disso; que continue a gerir a economia exatamente como tem feito desde 2003. Mas volto a insistir. Se da política Lula parece ter perdido as rédeas em definitivo, ainda mantém controle da economia o suficiente para tentar, dentro da padronagem conservadora que vestiu, ao menos aliviar o peso do fardo que tem a carregar até o dia 31 de dezembro de 2006.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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