Pensata

Vinicius Mota

17/07/2005

A síndrome de Souvarine

"Ia, com seu ar tranqüilo, ao extermínio, a toda parte onde houvesse dinamite para lançar aos ares as cidades e os homens." Assim o escritor francês Émile Zola (1840-1902) narra o último ato do anarquista Souvarine em seu famoso romance "Germinal", publicado pela primeira vez em 1885.

À diferença do protagonista, Etienne Lantier, que lidera uma greve de mineiros e nutre simpatias pelo socialismo reformista e progressivo do alemão Ferdinand Lasalle (1825-1864), Souvarine, inspirado nas idéias incendiárias do russo Mikhail Bakunin (1814-1876), é adepto das ações violentas, da sabotagem, da destruição física de tudo o que está associado ao capital e à sociedade burguesa.

O Souvarine de Zola, que também é russo, quando se despede do romance --"era para longe que ele ia, para o desconhecido"--, acabava de sabotar a grande mina de Voreux, onde seus colegas trabalhavam. Inundada pela ação do sabotador, ela se transformou num grande alagado, dragando às profundezas tudo a sua volta, destruindo galerias e máquinas, matando e deixando mineiros presos no subsolo em situação agônica.

"Ateiem fogo aos quatro cantos das cidades, ceifem os povos, arrasem tudo e, quando nada mais sobrar deste mundo podre, talvez surja dele um melhor", era a síntese da ideologia de Souvarine.

Toda essa digressão era para sugerir aos leitores que a ideologia da destruição, o niilismo radical, não é um privilégio do terrorismo apocalíptico islâmico, que deu mais uma demonstração de seu poder --e, também, do limite de seu poder--, no último dia 7 de julho, em Londres.

A quimera de que é necessário e possível derrubar a golpes violentos --de preferência em um só e certeiro chofre que dê início ao desabamento sistêmico_ o mundo equivocado que nos oprime ou que está em franco desacordo com nossas convicções povoa o ideário que nos é próximo há muito tempo. Souvarine está convicto de que apenas dos escombros do capitalismo carcomido poderá ser moldada a sua utopia de uma comunidade pacífica e sem Estado --"Sim! A anarquia, nada mais, a terra lavada pelo sangue, purificada pelo incêndio!". Bin Laden e os outros ideólogos cataclísmicos do islã querem pôr abaixo, a um só tempo, a "ordem ocidental" e a dos regimes que governam os países muçulmanos para instaurar o seu ideal de reinado islâmico, um califado transfronteiriço.

Não. A essência que move o terror islâmico não é comparável à da utopia anarquista radical. Esta quer construir uma ordem "natural", sem tutor, sem Estado, sem nenhuma forma de repressão; o outro, pelo contrário, pretende uma ordem divina, hierarquizada, altamente vigiada e repressora. Mas ambos se tangem quando definem seu método de ação e, mais precisamente, quando deparam com uma situação em que estão impedidos de vencer.

A façanha de Bin Laden poderia ter sido maior, poderia ter derrubado, a um só tempo, além das Torres Gêmeas e do Pentágono, a Estátua da Liberdade, a Casa Branca, a torre Eiffel e o Big Ben que jamais passaria perto de obter o que, em sua mente desvairada, imaginam os ideólogos do terrorismo apocalíptico. O terror é sempre a resultante da luta de quem, de saída, não pode vencer. Quanto mais direcionado a alvos civis, a gente comum que trafega pelas ruas e que vai ao trabalho, maior é a tradução da sua impotência.

Outro ponto em comum entre as duas ideologias é a atração que exercem sobre a juventude. Os operários do terror são todos jovens, com raras exceções. Hasib Mir Hussain, morador da suburbana Leeds, tinha apenas 18 anos quando saiu em missão com uma mochila-bomba nas costas, na manhã do último dia 7. Havia se tornado religioso aos 16. Jovem como os mais radicais anarquistas modernos que, na mesma época, se batiam contra a polícia nas redondezas de Edimburgo, onde se reuniam os governantes dos países mais ricos do planeta.

O jovem Souvarine afogou e esmagou colegas seus, destruiu máquinas, mas nem de longe arranhou o alvo que desejava atingir. Pelo menos, pôde sair da cena e buscar outras paragens para dinamitar e sabotar. Assim como nossas intrépidas vítimas voluntárias de surra policial e devastadoras de lojas de fast-food na Escócia já estão prontas para outra coça. Já os garotos de Leeds não podem fazer o mesmo. E aí está, cristalina, uma fundamental diferença no "ethos" do terror suicida. Não basta ser agente da destruição; é necessário sofrê-la antes e mais fortemente que todos os outros que, desavisados, irão pelos ares nessa comunhão macabra.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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