Pensata

Vinicius Mota

31/07/2005

Uma morte exemplar e um cínico retrocesso

A mensagem das autoridades britânicas retirada do massacre do brasileiro Jean Charles de Menezes dentro de um vagão de metrô em Londres brotou suficientemente compreensível dos torneios de linguagem. Quem estiver agindo de modo suspeito está sob risco de ter o mesmo destino.

Não bastou ter sido assassinado com oito disparos à queima-roupa, após tombar de bruços, imobilizado por dois policiais vestidos com trajes civis, segundo relatou uma testemunha a dois metros da cena. O eletricista mineiro acabou caindo como uma luva na estratégia de contrapropaganda do Novo Trabalhismo britânico, surgida dos atentados de 7 e 21 de julho e lastreada na disseminação do medo --mesma moeda utilizada pelo terror internacional.

O discurso não foi direto. Veio embalado no proverbial cinismo dos governantes britânicos, de resto já elaborado à náusea, ao longo de oito anos de gestão Blair, como um amortecedor retórico para decisões como a de invadir o Iraque ao lado dos falcões da extrema direita americana.

No caso de Jean Menezes, Tony Blair, ele próprio, conquistou o primeiro lugar que lhe é de direito com esta fala: "Se as circunstâncias tivessem sido outras, se esse caso se tivesse revelado o de uma ameaça terrorista e se os policiais tivessem falhado em tomar aquela atitude [de matar], eles teriam sido criticados pelo motivo oposto".

Com idéias que se valem da mesma armadilha retórica, governantes tentaram justificar alguns dos mais atrozes crimes cometidos na longa tradição sanguinária do Ocidente. A fala de Blair é prima-irmã do argumento clássico que tem a intenção de justificar a tortura, sempre acompanhado de um exemplo do tipo: se você tem informações de que aquela pessoa presa pela polícia sabe de um atentado prestes a acontecer, que potencialmente vai vitimar várias pessoas inocentes, por que não utilizar a tortura para arrancar-lhe a confissão, no intuito de evitar um banho de sangue maior?

Perceba o leitor que esses discursos estão sempre repletos de "ses", de hipóteses encadeadas em outras hipóteses. O cidadão a quem a mensagem se dirige é envolto num ambiente insólito, em que é convidado a confiar cegamente na boa intenção da autoridade de proteger a sua vida.

Acredito que muitos rebateriam a tese implícita na fala de Blair, a da validade da política de "atirar para matar", atestando a sua ineficácia no caso de terroristas suicidas que, por definição, estão predispostos a morrer e, portanto, não deixarão de carregar suas mochilas-bomba por temor de terem sua massa encefálica esfacelada a tiros pela polícia. Como outros rebateriam o argumento pró-tortura citando a extensa bibliografia, militar inclusive, que evidencia a sua incapacidade de alcançar o objetivo de obter informação verdadeira do supliciado.

Mas trilhar esse caminho, creio, é já aceitar o inaceitável. Não se trata de uma discussão sobre eficiência da tortura ou do protocolo "atirar para matar". Trata-se de uma questão de princípios civilizatórios, estes mesmos que Blair e seu companheiro Bush argumentam que desejam implantar no Iraque e em outros países do Oriente Médio --isso, frise-se, apenas depois que a justificativa das "armas de destruição em massa" de Saddam entrou para o mesmo anedotário em que se encontram as lendas de gnomos e outros seres encantados da floresta.

A polícia de um país que se quer democrático não pode assassinar um inocente, num autêntico e ostensivo ato de execução, impunemente. Ninguém que tenha dito, logo após o massacre da pessoa cujo nome e cuja nacionalidade eram desconhecidos do público, que a polícia havia matado um homem "diretamente ligado" aos atentados do dia 21 de julho pode permanecer intacto na chefia da Scotland Yard depois que a verdade se impôs.

A permissão cinicamente reiterada aos policiais britânicos para matar suspeitos, levada a termo pelos principais governantes do país tão logo se descobriu que o morto era um inocente, é sintoma de um retrocesso a termos pré-hobbesianos. A única mensagem aceitável de um governo responsável e comprometido com princípios democráticos seria a de que houve um erro grave da polícia e que as investigações apontariam as pessoas a serem responsabilizadas e os procedimentos a serem adotados para evitar novas tragédias. E ponto.

Mas não foi isso o que ocorreu. Blair e seus ministros se prontificaram a afagar abertamente não só a polícia enquanto corporação, o que seria compreensível num contexto de caçada nacional a terroristas, como os policiais e toda a cadeia de comando e de informantes que cometeram o bárbaro assassinato. Para completar, o comissário Ian Blair, chefe da Scotland Yard, humilhado pelo desenrolar dos fatos, acrescentou que mais inocentes poderiam ser mortos, pois a ordem de atirar na cabeça de suspeitos de terror suicida não seria suspensa.

Essa é a breve história de como um brasileiro que saiu para trabalhar na sexta-feira de manhã, e que foi massacrado por policiais dentro de um vagão de metrô sem saber por que, se tornou um exemplo exposto em praça pública a serviço da propaganda antiterrorista do governo "progressista" de Tony Blair.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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