Pensata

Vinicius Mota

14/08/2005

A regressão de Lula

Não há uma estratégia de defesa do presidente da República diante da espiral demoníaca de fatos que já arrasaram o seu governo irremediavelmente, sem que a catarse tenha ainda chegado ao fim. O que há é uma resultante de espasmos retóricos, ao que parece emanados da própria cabeça de Luiz Inácio Lula da Silva.

Até onde pude acompanhar essa triste evolução --ninguém que tenha algum juízo deveria regozijar-se do que está ocorrendo no Brasil agora--, o sentido geral desses arroubos de palavras é o de uma regressão, um abandono da imagem do animal político em busca do conforto que pode ter um ser isolado, ameaçado e amedrontado.

"Sou filho de pai e mãe analfabetos, minha mãe não era capaz de fazer um 'o' com um copo. E o único legado que eles deixaram, não apenas para mim, para a família, era que andar de cabeça erguida é a coisa mais importante que pode acontecer a um homem e a uma mulher. Portanto, meus companheiros, eu conquistei o direito de andar de cabeça erguida, neste país, com muito sacrifício. E não vai ser a elite brasileira que vai fazer eu baixar a minha cabeça. Não vai ser", disse Lula no Piauí, no dia 22 de julho.

A elite brasileira, conspiradora, entrou de vez no léxico presidencial na crise. A lei fundamental, natural, da política, quiseram nos convencer teóricos "das elites" como Vilfredo Pareto, Gaetano Mosca e Robert Michels, é que uns poucos nascem para governar e a maioria para ser governada. A massa, o povo, jamais chegará de fato ao poder, um terreno dominado por grupos minoritários que se alternam.

Não é à toa que o presidente brasileiro, nesse movimento retórico, prefere realçar a sua biografia de retirante nordestino que passou fome. É como se as "elites" quisessem barrar alguém que não pertence aos seus quadros de exercer a atividade que lhe é de direito, o poder.

Lula silencia sobre o seu passado de principal liderança sindical no coração da mais dinâmica atividade industrial brasileira no final da década de 1970, de figura de maior destaque na criação e na consolidação do PT como um dos grandes partidos do país, de seu papel de proa nas disputas presidenciais desde que o voto direto para o posto foi reinstaurado, de sua acachapante vitória eleitoral em 2002, financiado pelos principais grupos econômicos instalados no Brasil.

Dizer isso seria afirmar, automaticamente, que Lula, por qualquer critério que se eleja, faz parte da elite política do Brasil há muitos anos; que sua figura e seu partido articulam interesses econômicos, financeiros e sociais bastante complexos, poderosos e densos; que há outros grupos de elite --outros partidos, por exemplo, e não "as elites", genericamente falando-- que lhe querem arrebatar o poder, como Lula e seu grupo de elite quiseram --e conseguiram-- conquistar o poder enquanto esteve nas mãos de adversários.

O discurso das elites, repetindo a tautologia conservadora de Michels, Pareto e Mosca de que uns governam e outros são governados, age como uma cortina de fumaça a encobrir movimentos muito mais precisos e significativos no campo da política. Ao naturalizar e transformar em lei fundamental uma situação que é mera identidade contábil do que ocorre em sociedades humanas, ele empreende uma fuga da política. No léxico específico de Lula, essa fuga ganha tons de um lamento contra as injustiças do mundo.

Mas a jornada do presidente para longe da política não pára aí. Duas semanas depois, Lula voltou à carga:

"Saí de Garanhuns com 7 anos de idade, minha mãe botou oito filhos num pau-de-arara, andamos 13 dias até chegar na cidade de Santos, em São Paulo, e comemos o pão que o diabo amassou durante muitos e muitos anos. Eu tinha 7 anos, tinha uma irmã de 2 anos, tinha uma irmã de 9 anos, tinha um irmão de 10, só tinha um ou dois em condições de trabalhar e a minha mãe teve o azar de chegar em São Paulo e encontrar o marido dela já casado com outra mulher. Eu estou dizendo isso para dizer para vocês uma coisa: eu convivi com minha mãe até 1980, quando ela morreu. E eu nunca vi, em nenhuma situação, nenhuma, por pior que fosse, minha mãe perder a esperança, ela não perdia a esperança."

É Lula buscando a mãe, o último abrigo, uterino, do ser em fuga.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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