Pensata

Vinicius Mota

21/08/2005

Um cadáver legítimo

O presidencialismo, num país institucionalmente maduro, impõe um ônus em momentos de crise aguda como o que o Brasil atravessa agora. Ele obriga a nação a suportar um governo politicamente arruinado até que o processo eleitoral se complete nos prazos previamente agendados.

O preceito está especificado no artigo 82 da Constituição brasileira: "O mandato do Presidente da República é de quatro anos e terá início em primeiro de janeiro do ano seguinte ao da sua eleição".

A condição que vem ao caso discutir para o descumprimento dessa ritualística é o processo de impeachment, que é desferido, no ordenamento jurídico vigente, quando dois terços da Câmara dos Deputados admitem uma acusação contra o presidente da República por crime de responsabilidade.

O crime de responsabilidade, por sua vez, está expresso no artigo 85 da Carta. Ele diz que atos do presidente que atentem contra a Constituição Federal configuram crime de responsabilidade. Mais especificamente, atos que agridam: a existência da União; o livre exercício dos outros Poderes constitucionais e entes federativos; o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; a segurança interna do país; a probidade administrativa; a lei orçamentária; o cumprimento das leis e das decisões judiciais.

Mas, como a lei especial a que o artigo 85 alude, em seu Parágrafo Único --"Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento"-- até hoje não foi produzida pelos legisladores, juristas usualmente recorrem à Lei 1.079, de 1950, para tentar definir esses crimes.

Da minha leitura dessa lei --que não é a de um exegeta, apenas a de um cidadão que tem a pretensão de captar o que está escrito--, penso que dois casos poderiam ser usados como argumento pelos que pleiteiam o impeachment do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: 1) "Usar de violência ou ameaça contra algum representante da Nação para afastá-lo da Câmara a que pertença ou para coagi-lo no modo de exercer o seu mandato, bem como conseguir ou tentar conseguir o mesmo objetivo mediante suborno ou outras formas de corrupção"; e 2) "Proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo".

Mas esses enunciados ainda não caracterizam um fato --ou um conjunto deles-- que atinja pessoal, direta e inapelavelmente o presidente da República, razão pela qual não há até este momento em que escrevo --fim da tarde de sábado, 20 de agosto de 2005-- motivo suficiente para cassar-lhe o mandato.

Não basta que tenhamos convicção da inverosimilhança do argumento presidencial. Eu não acredito, como a maioria informada, suponho, não acredita, que ele não soubesse de nada o que se passava ao seu redor, tamanho foi o esquema de arrecadação e distribuição irregular de recursos, atrelado a nomeações e transações com grandes empresas e fundos de pensão, montado nas suas barbas.

É preciso, porém, ainda mais que isso, dentro das regras vigentes e dentro de um presidencialismo que se queira maduro, para interromper um mandato que emanou do voto popular direto. É preciso a prova cabal, inapelável, que vincule o presidente diretamente à falha capital _um cheque, uma transação bancária, um telefonema gravado, uma "Land Rover", uma fita de vídeo, uma série de testemunhas críveis que convirjam para a culpabilidade do presidente, uma confissão. Objetivamente, ainda não surgiu essa prova.

Tampouco faz sentido que um argumento de notável conveniência política e validade lógica como o de que seria melhor ter um governo com condições efetivas de administrar o país do que um pesado esquife a carregar por 13 meses venha justificar o açodamento para defenestrar Lula.

Se estivéssemos num regime parlamentarista, a conveniência política estaria plenamente referendada pelo arranjo constitucional, e já teríamos dissolvido o "gabinete Lula" e convocado novas eleições. Vale o mesmo raciocínio para o mecanismo de "recall" de mandatos, previsto por exemplo no Estado americano da Califórnia, em que, sob condições específicas, uma nova eleição pode ser convocada para que a população decida se o governante de turno deve ou não prosseguir até o final de seu mandato.

Um plebiscito realizado em 1993, no entanto, já vedou o parlamentarismo no Brasil e encerrou o assunto. Fui voto vencido, mas tenho de me curvar à maioria. O mecanismo de "recall" simplesmente não existe na Carta.

Pode vir a existir, se houver uma emenda constitucional não impugnada pelo Supremo Tribunal Federal, mas só para mandatos futuros. Mudanças que alterem as regras do jogo em curso _como o instituto da reeleição que deu a FHC a chance de recandidatar-se quando havia sido eleito para um mandato sem essa possibilidade_ são sintomas de instituições débeis, afeitas a casuísmos. Temos de resistir a isso.

Se nenhum fato vier a comprometer Lula inapelavelmente, ele tem o direito, conquistado pelo voto popular, de continuar no governo até 31 de dezembro de 2006. Tem o direito de recandidatar-se nas eleições de 1º de outubro do ano que vem. Pode ser um cadáver político insepulto, a apodrecer progressivamente, mas terá sido um cadáver legítimo.

Digo mais. Sempre na hipótese de que nada fatal surja contra Lula, será desejável para o país que ele se candidate novamente à Presidência em outubro de 2006. É nesse momento que o instituto da reeleição atua para que o ônus político de ter de aturar um governo inerte, gravoso, por meses a fio se transforme em bônus. O bônus do veredicto popular definitivo.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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