Pensata

Vinicius Mota

28/08/2005

Os ossos da sogra e o libertador dos porcos

A ação ocorreu entre as 20h da terça-feira, 5 de outubro de 2004, e as 8h do dia seguinte, no cemitério da igreja de são Pedro, na pequena paróquia de Yoxall, centro da Inglaterra. A sepultura de Gladys Hammond, que morrera em 1997 aos 82 anos, foi arrombada, e seus restos mortais, furtados.

Gladys era sogra de Christopher Hall, co-proprietário de uma fazenda que cria porquinhos-da-índia para serem usados como cobaias em experimentos médicos. O seqüestro do que restou do corpo de Gladys foi uma autêntica operação terrorista de uma célula mais radical do movimento que exige o banimento do uso de animais em laboratórios no Reino Unido.

E deu certo. Na terça-feira da semana passada (23 de agosto), os proprietários da fazenda, a Darley Oaks, anunciaram que deixarão de criar os pequenos roedores a partir de janeiro de 2006. "Nós agora esperamos que, como resultado deste anúncio, aqueles responsáveis pela remoção do corpo de Gladys a entregarão de volta, para que ela possa repousar novamente no seu justo local de descanso", disse o comunicado, em nome de David Hall (irmão de Christopher, genro de Gladys) e seus sócios.

Desde pelo menos cinco anos antes de ter os despojos de Gladys seqüestrados, os Hall vinham sendo alvos de uma incansável série de sabotagens perpetradas por defensores radicais da causa dos animais. As ações incluíram corte de eletricidade e de linhas telefônicas da fazenda, ataques com bombas incendiárias e a propagação de boatos sobre ocorrência de pedofilia na família.

Em abril, já com o seqüestro em andamento, o grupo enviou uma mensagem a jornais locais em que dizia estar disposto a devolver em partes os restos mortais de Gladys, caso progressos fossem feitos para o fechamento da fazenda. Afirmava também que um sexto dos despojos havia sido enterrado num bosque perto da propriedade. E fazia ameaça mais séria: "Os Hall têm uma escolha. Se tomarem medidas agora para fechar [a fazenda], podem não ter de ver um de seus familiares ou de seus amigos enterrado ...por nós".

Após o anúncio de que o negócio dos porquinhos-da-índia seria encerrado, o "Times" de Londres ouviu um extremista que atuou no caso Hall. Ele não escondeu o seu contentamento, embora tenha preferido não se identificar: "É uma vitória fundamental para o movimento pelos direitos dos animais. Queremos aqueles porquinhos-da-índia fora dali. Esses animais charmosos e sensíveis não devem ser encarcerados em galpões sem janelas".

O efusivo ativista também lançava as bases teóricas para sua ação: "Os horrores da vivissecção, que matam um sem-número de animais, são uma justificativa para o que essencialmente é uma ação criminosa de baixa intensidade". O ativista que o "Times" ouviu fala em nome da assim chamada "Frente de Libertação Animal", uma clara absorção do léxico guerrilheiro.




OS ANIMAIS, OS NOVOS ESCRAVOS, SUCEDEM O PROLETARIADO

Na página inicial do sítio de uma das mais famosas organizações do gênero, a Peta (sigla em inglês para Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais), a foto de um pé humano é colocada ao lado da de um pé de elefante, ambos acorrentados. No alto, em letras grandes, está o título do editorial "Mudando a maré da tirania", cuja principal passagem é esta: "As vidas dos animais são tão importantes para eles como as nossas para nós. Precisamos ficar ao lado deles, assim como pessoas de bem de outras eras ergueram sua voz e até colocaram em risco suas vidas para defender mulheres, crianças, africanos, nativos americanos e outros grupos oprimidos".

Desenvolvendo o tema inicial, a Peta, em outra página, fala dos índios americanos como mote: "Colonos vieram para a América para escapar da tirania, mas imediatamente começaram a tiranizar os povos nativos americanos. Hoje nós casualmente exterminamos e desterramos animais que não querem nada além de continuar a construir os seus lares e criar as suas famílias nas terras que eles têm habitado por milhares de anos."

Quem acessa a página de Steven Best, professor de filosofia da Universidade do Texas, em El Paso, presidente da ONG Stop Animal Neglect and Exploitation (pelo fim da negligência com os animais e da sua exploração) e vice da Sociedade Vegetariana de El Paso, logo depara com a famosa citação de Karl Marx "Até agora os filósofos se preocuparam apenas em interpretar o mundo de diversas maneiras. A questão, no entanto, é transformá-lo". Quem procura por sua produção teórica encontra o artigo "O Novo Abolicionismo: Capitalismo, Escravismo e Liberação Animal", que começa explicitando suas bases teóricas gerais: "Organizado em torno do lucro e dos imperativos do poder, o capitalismo é um sistema de escravidão, exploração, hierarquia de classes, desigualdade, violência e trabalho forçado".

Depois de descrever brevemente o sistema escravista que no passado prevaleceu nos EUA e suas contradições, Best dá o pulo do gato: "Porém, mais de um século após a libertação dos negros nos anos 1880, a escravidão novamente emergiu como um ponto de debate e luta, enquanto a preocupação da sociedade transita de escravos humanos para animais, e um novo abolicionismo, que busca a libertação dos animais, surge como um ponto de ignição para a evolução moral e a transformação social".

O filósofo não pára aí. Alerta contra o perigoso discurso do "welfarismo" (palavra derivada do termo em inglês para "bem-estar") animal: "Não é incomum que um racista argumente que a escravidão foi benéfica para os negros porque eles eram biologicamente despreparados para a liberdade. De modo similar, gestores de grandes fazendas dizem que porcos, bezerros e frangos estão melhores em condições de confinamento intenso do que estariam em seu habitat natural".

É isso aí. Na longa tradição da militância marxista de louvar ditadores, já ouvimos falar de vários libertadores dos povos (Lênin, Stalin, Mao, Fidel, até Bin Laden). Mas é melhor nos acostumarmos, a partir de agora, com os libertadores dos porcos. Novos tempos.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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