Pensata

Vinicius Mota

11/09/2005

Os ventos da mudança

Três grandes acontecimentos marcaram a administração do republicano George W. Bush até aqui: o 11 de Setembro, a invasão do Iraque e a devastação provocada pelo furacão Katrina no Sul dos EUA. Os dois primeiros tiveram conseqüências de longo alcance no tempo --seu ciclo ainda está longe de acabar--, e é de esperar que os efeitos do desastre que se abateu sobre a costa do golfo do México em três Estados, incluindo a simbólica Nova Orleans, também perdurem. O Katrina não foi apenas um fenômeno natural, foi um fato político.

Há quem tome o que acabei de dizer de maneira alucinada. Alguns mulás e xeques dizem que a ira de Alá se abateu sobre o líder maior dos cruzados infiéis; alguns rabinos afirmam que foi vingança de Deus, porque Bush apoiou a retirada dos assentamentos judaicos da faixa de Gaza.

Ambientalistas radicais não deixam por menos. Apenas substituem o divino por uma concepção divinizada da natureza, que, farta do descaso do bushismo com o ambiente, teria desferido um golpe no coração dos EUA para castigar seu presidente --talvez cogitem que, se Bush tivesse assinado o Protocolo de Kyoto e se convertido à causa ambiental com a mesma fé com que aderiu ao cristianismo fanático, o Katrina não tivesse sido mais que uma brisa tropical.

O furacão não se tornou um fato político por conta desses arroubos de fantasia, de resto anedóticos. O Katrina enseja, de fato, uma crítica, por dentro do grande jogo da política americana, ao programa (anti-)ambiental dos neoconservadores republicanos ao alertar para o despautério dessa opção e para o seu profundo descaso com as gerações futuras, diante do acúmulo de evidências científicas sobre o aquecimento planetário, por exemplo.

O Katrina também reacendeu o debate sobre o desmonte das instituições de bem-estar do Estado americano, programa que vem sendo implementado, em marcha batida, desde a ascensão de Reagan. E somou-se às críticas que já vinham crescendo contra a opção de despender recursos orçamentários e humanos vultosos na aventura iraquiana, que não consegue sair da fase do fracasso. Por fim, pôs a nu o tema do racismo de fato e de discurso nos EUA --relembro o cristal de piedade racista de Barbara, mãe de Bush, ao comentar que alguns refugiados, negros de Nova Orleans, estavam melhores no alojamento para onde foram transferidos, no Texas, do que nas suas condições normais de vida antes da passagem do furacão, pois eram "desprivilegiados" mesmo.

Tanto o fato é político que Bush, depois de um tempo razoável de reflexão ausente, já começou a mudar o direcionamento dos recursos orçamentários no país. Em pouco mais de uma semana, um pacote de US$ 60 bilhões foi aprovado pelo Congresso para ser destinado às vítimas e para recuperar estragos do Katrina. É um valor bastante considerável, posto que, no Iraque, segundo estima a ONG americana "National Priorities Project", Washington gastou cerca de US$ 200 bilhões desde o início de 2003 até hoje (US$ 150 milhões dos quais custeados pelos contribuintes de Nova Orleans).

Os negros, os mais afetados pela devastação causada pelo furacão, constituem 13% da população americana, mas 25% de todos os pobres do país. Mais da metade dos negros americanos (55%) vive no Sul. Na região metropolitana de Nova Orleans, quase 38% dos habitantes são negros; no Estado do Mississippi, são mais de 36% ; na Louisiana, um terço; e no Alabama, 26%. Nesses três Estados, Bush venceu Kerry na disputa presidencial de 2004. Tivesse a tríade Mississippi-Louisiana-Alabama optado pelo democrata, o ocupante da Casa Branca hoje teria outro nome, de iniciais famosas (JFK).

Esses números e esse contexto têm animado alguns a acreditar que ou George W. Bush dá uma guinada ao centro, faz concessões à lógica do 'New Deal' de Roosevelt (ideário que o jovem George, na faculdade, tachava de comunista) e redireciona o gasto público fortemente para essa região e para essa classe "desprivilegiada" do país ou a continuidade de seu grupo e mesmo de seu partido no poder estará seriamente ameaçada. Seria uma escolha entre a ideologia (associada, no caso do grupo de Bush, a interesses imediatos muito palpáveis) e o pragmatismo maquiavélico de quem busca, em última instância, permanecer no poder. Daqui por diante, vai ser interessante acompanhar esse embate --em que de nada vale a retórica do "inimigo externo" nem a do "Eixo do Mal" nem a da "guerra ao terror". Veremos, enfim, o núcleo de poder solidário a Bush atuar em um roteiro que não aceita divisões maniqueístas.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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