Pensata

Vinicius Mota

18/09/2005

Conservadores abaixo de zero

O documentário "March of the Penguins" --que, quando chegar ao Brasil, no mês que vem, se chamará "A Marcha do Imperador"-- é um fenômeno nos Estados Unidos. O filme, dirigido pelo francês Luc Jaquet, já faturou mais de US$ 65 milhões desde que estreou, em junho. Com isso, se tornou a produção da França com maior bilheteria nos EUA, desbancando "O Quinto Elemento", de Luc Besson. Também conquistou o posto de segundo documentário a mais faturar na história americana, perdendo apenas para "Farenheit 11/9", de Michael Moore. Está muito bem cotado para o Oscar de melhor filme estrangeiro.

O segredo do sucesso do documentário foi transformar a vida cotidiana de pingüins-imperadores, que vivem na Antártica, numa narrativa humanizada, a tematizar longas peregrinações e privações as mais severas num ambiente de todo hostil à vida. O que um roteiro tradicional de documentários científicos trataria como rotina mecânica de preservação de uma espécie em condições ambientais adversas, "A Marcha do Imperador" canta como uma saga de amor sacrificial, amor exclusivo entre o macho e a fêmea; amor, materno e paterno, que é capaz de enfrentar a fome, o frio e o vento extremos para assegurar a vida do filhote. "No lugar mais inóspito da Terra, o amor encontra um caminho", anuncia a propaganda do documentário, impressa numa imagem em que um grande pingüim-imperador alimenta, com o bico, o pequeno filhote.

"Marcha" narra um ciclo anual na vida de um grupo de pingüins, a partir de fevereiro (fim do verão antártico). É nessa época que os pingüins prontos para procriar saem, em fila indiana como monges, em peregrinação de dezenas de quilômetros, que dura dias a fio, da costa antártica para dentro do continente, para reencontrar o lugar onde nasceram. Lá chegando, os pares copulam, e a fêmea, com um terço do peso a menos, bota seu ovo por volta de maio. Cabe ao macho, então, abrigar o ovo das intempéries para que a fêmea viaje de volta até o mar, em busca de comida.

Em junho, nasce o filhote, que é alimentado por uma fina secreção do pai até que a mãe volte da longa jornada, com comida estocada e pronta para regurgitar o alimento no bico de sua cria. É, então, a vez de o pai partir em busca de comida para quebrar seu longo jejum e, na volta, alimentar o filhote. Antes de seguir em viagem, porém, ensina o recém-nascido a reconhecer o som particular de sua voz paterna, para que o identifique na volta em a centenas de aves que se reúnem ali. E o revezamento de mãe e pai (um à cata de alimento, outro na guarda da cria) se dá até que o filhote tenha condições de se cuidar sozinho.
Essa epopéia antártica tem extasiado grupos conservadores cristãos nos EUA. Consideram o documentário uma ode à monogamia --e contra as relações homossexuais--, ao sacrifício e à devoção absoluta em favor da vida, mesmo que ainda "em ovo" --contra o aborto e a eutanásia, pois_, à paternidade, à maternidade. Outros afirmam que o documentário é um dos mais fortes argumentos a favor da crença de que os seres vivos foram criados por uma inteligência superior --o ideário chamado de "criacionista", que nega o evolucionismo de Darwin.

Numa iniciativa mais radical, a rede de igrejas evangélicas 153 House está organizando workshops com grupos de fiéis que assistem ao documentário. "No filme 'A Marcha do Imperador`, você pode encontrar muitos simbolismos espirituais relacionados ao Corpo de Cristo, a liderança, paternidade, maternidade e à experiência cristã em geral", diz o cabeçalho do formulário que orienta seus seguidores dispostos a participar dos encontros. "A proposta deste workshop é permitir que o Espírito Santo fale com você sobre essas e outras coisas conforme você assista a este filme".

A ficha serve para que o fiel vá até a sala de cinema onde seu grupo decidiu se reunir, assista a "Marcha" e tome nota das sensações divinas que experimenta. As recomendações são bastante específicas: "Por favor, use um caderno, uma lanterna e uma caneta para anotar o que Deus diz a você no momento em que Ele fala (em outras palavras, não espere até o filme acabar para escrever as notas)". Imediatamente após a sessão, o fiel deve reunir-se com seu grupo fora do cinema, a fim de trocar experiências e rezar.

Quando o filme chegar ao Brasil, prometo seguir as instruções acima à risca. Deus há de me iluminar para que eu compreenda o sentido dessa marcha.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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