Pensata

Vinicius Mota

09/10/2005

Tucanos, petistas e o governo do capital

Quatro meses de profunda crise política no Brasil ainda não foram capazes de retirar a política federal brasileira da vereda pela qual caminha há mais de uma década. A um ano da eleição presidencial de 2006, todas as pesquisas de intenção de voto mostram que o núcleo da disputa se dá entre o petista Luiz Inácio Lula da Silva e um candidato tucano.

Apesar da perda aguda de popularidade, Lula, da perspectiva deste início de outubro de 2005, angaria apoio suficiente para ser competitivo numa eventual e hoje bastante provável recandidatura.

O prefeito de São Paulo, José Serra, é o tucano que surge com as maiores chances de rivalizar com o petista e, se a definição da chapa tivesse de ser feita hoje, Serra seria catapultado, não sem uma alta dose satisfação, à condição de candidato à Presidência --todas as considerações acerca do prejuízo político de deixar a prefeitura no meio do mandato se tornariam irrelevantes diante da perspectiva de conquistar o Planalto.

Lula tem sido um dos dois pólos a rivalizar todas as eleições presidenciais desde a reinstauração do voto direto, em 1989. Pouco tempo depois, em 1994, corrigindo a aventura Collor, os tucanos entraram duradouramente nesse jogo; Fernando Henrique Cardoso liderou a grande coalizão que implementou o Real, recebeu dois mandatos presidenciais em razão disso e seu ministro da Saúde e correligionário paulista foi ao segundo turno contra Lula em 2002.

Os motivos da persistência dessa dualidade são complexos. Uma boa dose de acaso deve ser levada em conta --a resultante poderia ser diversa, por exemplo, se Collor tivesse resistido ao impeachment, se o PT tivesse aderido ao governo Itamar, se tucanos e petistas tivessem selado uma coalizão, como alguns cogitavam, em 1994, ou se Lula tivesse desistido da disputa presidencial em 1998.

Para destacar um entre vários aspectos fora do terreno do "se", é interessante notar a coerência entre essa rivalidade na macropolítica e a inserção ao mesmo tempo competitiva e complementar desses dois conjuntos de atores na gestão do patrimônio nacional.

Em relação aos tucanos, é quase intuitivo perceber a sua ligação estreita --inclusive observando os laços de amizade, de parentesco, de casamento--, com os grandes detentores e gestores da riqueza privada do país.

Ainda assim, essa proximidade carecia de uma face política mais estável na incipiente democracia de massas. FHC não perdeu a oportunidade de costurar essa aliança quando teve à mão os instrumentos da política econômica --basicamente a taxa de juros de curto prazo, a capacidade de endividamento público, estatais a privatizar e o BNDES-- num ambiente de farta liquidez internacional --quando não, de um FMI prestativo-- e diante da principal demanda popular que era o fim da inflação alta.

Mais difícil é compreender a relação da elite do PT, da CUT e seus satélites com uma parte estratégica --porque diretamente ligada não apenas ao financiamento da dívida do Estado mas também aos investimentos das empresas e, portanto, ao ritmo da acumulação do capital-- da riqueza brasileira. Ela se dá na influência e na presença do petismo-cutismo na direção de alguns dos principais fundos de pensão do país e, em menor parte, nas cadeiras que a CUT ocupa, chova ou faça sol, no Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) _nela já se sentou, entre outros, Delúbio Soares_ e no Conselho Curador do FGTS.

A riqueza acumulada dos três maiores fundos de pensão do Brasil --Previ, Petros e Funcef-- superava R$ 100 bilhões no final de 2004. Esse não é um patrimônio abstrato; é dinheiro que está aplicado na dívida pública, em empresas e, em menor parte, em imóveis. São fatias de poder financeiro que rendem aos fundos de pensão a participação na tomada de decisões estratégicas e de controle de capital de grandes empresas brasileiras.

Reflita o leitor sobre o caso exemplar de Sérgio Rosa, o presidente da Previ, o fundo dos funcionários do Banco do Brasil que tem mais de R$ 70 bilhões em investimentos. Rosa presidiu a Confederação Nacional dos Bancários, ligada à CUT. Já participava da diretoria executiva da Previ antes do governo Lula, pois foi diretor escolhido, graças à força do sindicalismo cutista no BB, pelo Conselho Deliberativo (o órgão máximo, composto paritariamente por representantes indicados pelo banco, leia-se governo, e por integrantes eleitos pelos trabalhadores).

Rosa, que foi vereador paulistano pelo PT e participou da equipe de transição de Lula, já presidiu o Conselho de Administração da Vale do Rio Doce (a segunda maior empresa brasileira) e, nos dias atuais, capitaneia uma batalha pesada para expulsar o banqueiro Daniel Dantas da Brasil Telecom.

A movimentação de figuras como Sérgio Rosa, Henrique Pizzolato (ex-presidente do Conselho Deliberativo da Previ e diretor de marketing do BB que caiu após o estouro do escândalo do "mesalão") e Luiz Gushiken (ex-sindicalista bancário, ex-consultor de fundos de pensão e um dos ministros mais poderosos da gestão Lula até a eclosão da crise) pelo PT/CUT, pelo governo e por grandes empresas esclarece em que resultou a conquista do poder de Estado para essa fatia de atores políticos: aumentou o seu grau de controle sobre a riqueza dos fundos de pensão e, assim, ampliou a sua força em decisões estratégicas sobre o capital de empresas importantes, muitas delas ex-estatais.

Há ainda que acrescentar o poder de exercer a maioria no FAT (mais de R$ 100 bilhões em aplicações em 2004) e no FGTS e a gestão do BNDES (canal por onde escoa boa parte do dinheiro do FAT diretamente para as empresas) que a chegada de Lula ao Planalto propiciou.

O raciocínio também vale para ter uma idéia do apetite dos tucanos orgânicos para, nas eleições de 2006, tentar retomar parte do controle sobre os destinos dessa grande fonte de riqueza. Mas vale, sobretudo, para demostrar que o circuito tucano-petista de gestão das grandes fontes de poupança nacional tem a sua coerência e a sua complementaridade.

A simbiose crescente entre esses gestores de patrimônio oriundos do sindicalismo cutista-petista, o governo (seja qual for seu ocupante de turno), as grandes empresas e os grandes bancos que atuam no Brasil é um dado. Uns não prescindem dos outros.

Sem as privatizações tucanas, as oportunidades para a expansão do poder de gestores petistas de grandes riquezas de fundos de pensão como Rosa seriam mais restritas. Estariam muito mais atreladas a uma vitória de Lula. Hoje, eles têm um núcleo preservado de poder de influência em decisões sobre alocação de capital dos fundos e controle de grandes empresas mesmo na hipótese de uma derrota do petista em outubro do ano que vem.

Isso quer dizer que tucanos e petistas continuarão a governar parte importante das decisões que influem diretamente no nível de acumulação do capital e no nível de emprego seja quem for o ocupante da cadeira presidencial a partir de janeiro de 2007.




Pergunta desconcertante

Um amigo que teve o desprazer de ler esta coluna antes de sua publicação me dirigiu um questionamento que, incapaz de contrariá-lo, remeto ao leitor. Ponderou que, enquanto os tucanos estiveram no governo, agiram de fato organicamente e com projetos claros: privatizaram, patrocinaram a associação da riqueza das empresas, dos bancos, do capital externo e dos fundos de pensão num projeto que lançou o capitalismo brasileiro em bases novas, atuou na rearticulação de setores como o petrolífero, o petroquímico, o de telecomunicações, o siderúrgico e atolou no setor de energia elétrica. Pode-se até criticar o que fizeram, os seus parâmetros, as suas premissas, os seus métodos; mas há que reconhecer que estavam imbuídos dessa missão e que a levaram adiante.

Depois de ter dito tudo isso, meu amigo, que não pode ser acusado de simpatias tucanas, me indagou: E o PT, que hoje tem até mais ascendência do que os tucanos em decisões como as dos fundos de pensão de estatais (pois domina tanto o lado dos sindicalistas como o do governo) e acesso a todos os outros instrumentos do Executivo federal de gestão da riqueza, tem usado esse poder todo para quê? Ao que respondeu: Para nada, trata-se apenas de projeto de ascensão pessoal --no máximo de grupos fechados que não se comunicam ou que bombardeiam uns aos outros--, sem organicidade nenhuma, sem plano, sem projeto. Não encontro argumento para rebatê-lo.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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